CAPÍTULO 7
- Um duplo Interlúdio: Deus protege os fieis (7:1-17)
João nos frustra com a postergação da abertura do sétimo selo para 8:1. Mas é evidente que a urgente pergunta com a qual termina o Cap. 6 (sexto selo), é a chave definitiva para a interpretação do Cap. 7: Quem pode permanecer de pé no grande dia do juízo? O Cap. 7 responde com duas visões dos que sim poderiam permanecer de pé perante o juízo divino.
Este interlúdio é um verdadeiro cântico de vitória em duas estrofes. Aqui vemos plenamente a proteção divina dos fieis (7:1-8) e a gloria de sua vitória final (7:9-17). Frente a consternada confusão dos ímpios (6:15-17), vemos agora a inabalável confiança no Senhor que vive nos fieis.
Teologicamente o tema central deste Cap. é a igreja. São mais bem duas visões do povo de Deus. Em vez de nos deparamos com o fim do mundo no fim do sexto selo, nos aparecem duas visões do povo de Deus. A promessa de proteção e de vitória é marcadamente comunitária, e não meramente individualista. A igreja é o instrumento da ação de Deus para conduzir a história rumo a seu reino. (O interlúdio entre a sexta e a sétima trombeta se dedicara também a igreja e sua missão).
Esta primeira visão, depois de uma breve cena em que anjos retém ventos de juízo (7:1-3), João vê o número dos fieis selados (7:4-8). Em seguida (7:9-17), João vê uma multidão de redimidos na presença de Deus. Podemos dizer que este capitulo começa com um pouco de “meteorologia antiga” (7:1-3), procede a uma passagem curiosamente matemática (7:4-8), e termina com uma impressionante cena litúrgica (7:9-17). A primeira visão tem a ver com os crentes na terra (igreja militante); a segunda com a igreja celestial depois da grande tribulação (igreja triunfante).
a. Primeiro Interlúdio: os 144.000 selados do Senhor (7:1-8)
i. Cenário introdutório (7:1-3)
Aqui João apresenta uma cena muito gráfica. Quatro anjos, parados sobre os quatro ângulos da terra, se esforçam para deter quatro ventos de juízo. Do oriente aparece um quinto anjo que traz em suas mãos o selo de Deus e ordena os quatro anjos de não fazer qualquer dano ate que termine de selar todos os servos de Deus. Uma vez que nem estes anjos nem seus ventos aparecem posteriormente, eles permitem a João acrescentar dramaticidade a selamento dos fiéis. João adaptou uma fonte judaica de seu tempo? O predomínio do numero quatro, que corresponde a natureza, dá um contexto cosmológico e global ao juízo e a proteção divina.
Um quinto anjo, vindo do oriente, onde Deus morava (Ez 43:4, Is 42:2), proclama uma intervenção especial de Deus para postergar o juízo. Porque primeiro havia que selar os servos de Deus. (João faz uma releitura de Ez 7-11). É interessante notar que somente aqui o juízo não vem depois da demora. João da dramaticidade para destacar que os fiéis estão selados sob a proteção divina. O juízo vira depois, mas sob o simbolismo das trombetas.
O selo, mencionado muitas vezes no NT (2 Co 1:22, Ef 1:13, 4:30), aqui sinala a proteção especial de Deus aos fieis ante os acoites das trombetas e das tacas (“a ira do Cordeiro”). Estas exceções dos fiéis aos juízos das trombetas e das tacas se moldam nas plagas do Egito (Ex 8:22, 9:4,26; 10:13; 11:7).
ii. O senso dos selados do Senhor (7:4-8)
Com 7:4 o drama que o antecedeu desaparece do relato. O que aparece são três elementos ausentes de 7:1-3: uma forte ênfase matemática, uma audição em vez de uma visão e uma linguagem judaica (as doze tribos de Israel). Mas é importantíssimo notar que em 7:3 se nos informa que os que serão selados são “os servos de nosso Deus,” e não somente os judeus. Esta frase no restante do Apocalipse nunca se refere somente ao povo judeu.
Eh obvio que todos os números desta passagem devem entender-se simbolicamente. Doze sinala o povo de Deus; o quadrado, o completo; mil, imenso, totalmente completo. Similares medidas aparecem posteriormente para descrever a estrutura quadrada ou cuba, da Nova Jerusalém (21:16-17); a cidade de Deus (Apoc 21), que correspondem a todo o povo de Deus de Apoc 7.
Por outra parte, havia muitos séculos as tribos do Norte haviam desaparecido com a queda de Samaria em 721/2 a.C. As únicas tribos que haviam sobrevivido as vicissitudes históricas eram Judá, Benjamim e Levi. Além disto, as doze tribos desde o início não eram de sangue puro; duas delas procediam de uma mãe egípcia, esposa de José, chamada Azenate, mãe de Efraim e Manasses (Gn 41:45); além disto uma “multidão mista” se havia agregado a estas tribos. Em verdade, havia séculos que “as doze tribos” se havia reduzido a um conceito puramente abstrato, de peso teológico muito maior que genealógico.
Uma característica notável de 7:4-8 é a total simetria numérica das tribos. Cada uma com exatos 12.000. Ainda que todas as tribos existissem, jamais seriam de população igual. Ademais para as tribos existentes como Judá, ou para o judaísmo do tempo final, a soma de 12.000 parecem mui poucos. Aqui podem iluminar-nos os sensos de Nm 1,2 e 26, que dão um total muito maior (603550) de varões adultos, ou 601730.
Outra anomalia desta lista é que ela não corresponde a nenhuma das que aparecem no AT. A lista de Apoc 7 tem cinco peculiaridades:
- Judá vem em primeiro lugar. Não Rubem, o primogênito da família. Judá seria o quarto. Judá poderia ser o primeiro na contagem de sul a norte, mas a lista não segue a ordem geográfica. Evidentemente João coloca Judá em primeiro lugar, por ser a tribo do Messias.
- Esta lista inclui Levi. Ainda que Levi era filho de Jacó, não se assignou aos levitas sacerdotes nem território (Nm1:49), nem serviço militar. Foi substituído por dois filhos de José, cujo nome ficou de fora.
- Paradoxalmente, a lista de Apoc 7:4-8 inclui José, mas também seu filho Manasses. É obviamente impossível que tanto o pai como o filho sejam uma tribo. Esta anomalia chocante nunca se pode explicar.
- A lista omite Efraim, a tribo mais importante do reino do Norte. Isto é muito estranho porque Jacó (Gen 48) bendisse com prioridade a Efraim, o filho mais novo de José, em detrimento a Manasses. Realmente Efraim chegou a ser a segunda tribo mais numerosa, depois de Judá, e seu nome era frequentemente sinônimo do reino do Norte (Israel) ou mesmo de todo Israel. (Os 13:1ss) (Vale a pena notar que Efraim se inclui na lista escatológica de Ezequiel (48:5-6); para Ezequiel, a reunificação de Israel consistiria precisamente no reencontro da “vara de Efraim” com o “vara de Judá” num só povo escatológico (Ez 37:15-23). Isto torna surpreendente a sua ausência da lista de Apoc 7:4-8.)
- Finalmente, esta lista omite a tribo de Dan. Isto é outro mistério, especialmente porque na lista das tribos escatológicas de Ez 48 a tribo de Dan ocupa o primeiro lugar (48:1). Já que ambas as listas são escatológicas, se as tomássemos literalmente, estariam em contradição, e uma estaria equivocada. Não existe nenhum texto judeu antigo que afirma que o Anticristo sairá da tribo de Dan, razão pela qual se excluiria da restauração das tribos de Israel.
João poderia ter utilizado uma fonte judaica para sua lista. Mas o que parece mais apropriado é que João haja esculhambado esta lista tão escandalosamente para sinalar que ele não se referia literalmente a nação judaica, mas ao novo povo de Deus. É um ensino comum do NT que a igreja é o novo Israel, e que os crentes cristãos são os verdadeiros filhos e filhas de Abraão. A igreja é o sacerdócio real, a nação santa, e a posse adquirida (Ap 1:6; 5:10; 1Pe 2:9-10). Neste sentido a igreja pode ser descrita simbolicamente como “”as doze tribos que estão em diáspora (Tg 1:1).
Isto também implica que as duas visões do Cap. 7 descrevem o mesmo grupo. A primeira visão, situada na terra, nos mostra os selados de Deus antes da tribulação vindoura. A segunda visão, no céu, os mostra depois desta tribulação, da qual saem vencedores (muitos, se não todos, pelo martírio).
b. Segundo interlúdio: a multidão multicultural inumerável (7:9-17)
A segunda visão do cap. 7 dificilmente poderia ser mais diferente da primeira. Em vez de somente ouvir, João agora vê. Em vez da fria repetição matemática de estatísticas, João agora contempla um cenário tão cheio de personagens, que ate parece um quadro de Bruegels. Seu significado central poderia resumir-se nas belas palavras do salmista: “Tu me faras conhecer…a alegria plena da tua presença, eterno prazer a tua direita. (Sal 16:11).
No transfundo desta passagem está presente a festa das cabanas (Lv 23:33-44) quando anualmente os israelitas “…se alegrarão (festejarão) perante o Senhor, seu Deus, por sete dias.” Esta celebração culminava todo o ciclo festivo do povo hebreu, depois da última colheita do ano, e era a festa mais alegre de todas. Se caracterizava pela dança das donzelas com vestidos brancos, e os rapazes cantando e brandeando tochas acesas. A festividade era tamanha, que dizia a Michna: “Quem não viu a alegria desta festa, nunca viu alegria na vida.” Ao ouvirem (ou lerem) Apoc 7:9-17 os judeu-cristãos reviviam o gozo festivo desta ocasião. E nos, para entrarmos empaticamente nesta visão, faríamos bem por recordar as festas que mais nos fascinaram na infância.
Igual a primeira visão (7:1-8), a segunda também responde à pergunta de 6:17: “Quem poderá suportar”, ou permanecer de pé, no dia do juízo? Estes vencedores já foram vistos antes da hora da prova, selados por Deus (7:4-8); agora são vistos depois da tribulação, triunfantes na presença de Deus. Por terem sidos fieis, estão de pé diante do trono, junto com todos os anjos.
Esta passagem pode ser vista como uma continuação, não esperada, da liturgia de 4-5. Mas há uma novidade: agora os próprios fieis estão dentro dos círculos concêntricos de adoração. Em contraste com 4-5, o que é humano agora entra no cenário que antes havia sido exclusivamente celestial. Os celebrantes litúrgicos que haviam aumentado de quatro (4:8), a vinte e quatro (4:11), a vinte e oito (5:8), a milhares de milhões (5:11) e a toda a criação (5:13), agora especificamente incluem os redimidos.
i. A visão da multidão multicultural (7:9-10). Se a primeira visão do cap. 7 se relaciona com Jacó e seus filhos como uma releitura da promessa da restauração escatológica das tribos, a segunda visão é uma releitura crista da promessa a Abraão de uma descendência como pó (Gn 13:16; 28:14), as areias do mar e as estrelas do céu (Gn 15:5; 22:17; 32:12-13). Esta descrição do povo de Deus como multidão inumerável e internacional agora se cumpre em Cristo.
A promessa a Abraão é também enfaticamente internacionalista. Deus anunciou que a prole de Abraão e Sara seria uma benção a todas as nações (Gn 12:2-4; 22:18; 28:14), em contraste com a maldição da prepotência de Babel (Babilônia) como superpotência imperialista (Gn 11:1-9). Dos descendentes da Abraão sairiam não somente Israel, se não outras nações e príncipes (Gn 17:6,16,20; 21:13; 28:3). Israel surgiu por ação divina do meio dos povos (Gn11:10-32), para se dirigir aos povos como canal de benção e de vida (Gn 50:20).
No Apocalipse este internacionalismo se expressa geralmente pela formula quadrupla que encontramos aqui: “de todas as nações, tribos, povos e línguas” (9). Esta formula aparece pouco no AT e na literatura apocalíptica, mas é frequente (em forma tripla) no livro de Daniel (Dn 3:7; 3:3,4,29; 4:1; 6:25; 7:14). João viu esta grande multidão “de pe, diante do trono e do Cordeiro (7:9). Assim, os redimidos inumeráveis de todos os séculos tomam seu lugar no cenário celestial, junto com os quatro viventes, os anciões, e os milhares de milhões de anjos para acrescentar louvor ao culto celestial (4:4-5:12). Estar “’em pe” diante de Deus significa aceitação pelo Senhor (cf. 6:17), acesso a sua presença, e participação na adoração celestial (14:1-3). Significa a vida em sua mais plena realização (Sal 16:11).
Aqui novamente aparecem “as vestes brancas” (cf. 3:4-5, 8: 4:4; 6:11). E provável que este simbolismo tenha um significado composto de muitas conotações: pureza, vitória (2 Mac 11:8; Ap 6:2), gozo e festa (Ecl 9:8), vestido de corte real, justificação e glorificação (3:5.18; 6:11; 19:8,14). Igual que 6:11, 7:13-14 e 22:114, este texto (7:9) utiliza o termo stole, uma vestimenta longa e larga. Na LXX se usava para as vestimentas sacerdotais (Ex 28:2; frequente em Ex, Lv e Nm), o que se enquadra com o texto litúrgico de 7:15.
Os vestidos brancos geralmente se combinavam com levar palmas (7:9), o que era típico na festa das cabanas. (Lv 23:39-40; Neh 8:14-17; 2 Mac 10:6-10). O povo saia aos montes para buscar ramos e palmas para construir a suas chocas (Neh 8:15). A certa altura da festa se batiam as ramas e as palmas, levando-as em alegre celebração. Aos agitarem as palmas recitavam o Sal 118, aumentando a forca de suas vozes ao chegarem ao v.25.
O grito dos redimidos: “A salvação pertence a nosso Deus, que esta sentado no trono, e ao Cordeiro” (7:10). A frase cita uma afirmação frequente nas Escrituras hebraicas (Sal 3:8; 37:39; Jon 2:9; cf. Sal 18:46; 27:1; 118: 14-15,25). Em geral os termos bíblicos para “salvação” significam “vitória”, e aqui os fieis vitoriosos gritam com jubilo, em alta voz (cf. 6:10), para exaltar a quem os fez triunfar. No Apocalipse soteria sempre significa “vitória” (7:10; 12{10; 19:1).
A novidade aqui, que vai além do AT, é a inclusão do Cordeiro neste grito de triunfo. O Cordeiro triunfou na cruz (Ap 5:5-7), e sua vitória é a nossa salvação. Agora os crentes vencedores reconhecem que a forca de seu triunfo não é própria deles, mas é do Cordeiro que venceu. Eles triunfaram no poder do Deus soberano e participam, mediante seu próprio sacrifício vencedor, no sacrifício vencedor do Cordeiro (7:14; !2:11). Em seu sacrifício o Cordeiro realiza novamente sua vitória definitiva.
Muitos comentaristas encontram aqui uma referencia a exclamação, “Hosana” da língua hebraica. Este termo (Sal 118:25) gradativamente se transformou de uma suplica (“Salva, Yahve”) a uma exclamação (Yahve salva!), associado a recitação do Salmo 118 (Sals Halel 113 a 118) na festa das cabanas. Não cabe duvida alguma que esta festa de muitíssima alegria calou profundamente no ânimo do povo judeu. E é logico supor que ao lerem esta passagem, junto com as referencias aos vestidos brancos e as palmas, os leitores judeu cristãos houvessem recordado a mais exuberante festa da sua tradição.
ii. A adoração dos anjos (7:11-12)
Eh tão firme e segura a declaração dos redimidos (“A salvação=vitória pertence (vem de) nosso Deus”, 7:10), que imediatamente o céu ressoa com um “Amem” unanime de todos os milhares de anjos (7:12; cf. 5:11). Este é o segundo Amem nesta liturgia celestial em dois atos. O primeiro foi muito pequeno, dos quatro seres viventes que culminou com o primeiro ciclo litúrgico (5:14). Este segundo Amem é imenso, ressonante e em alto som, no início do segundo ato. Este é o “Amem” mais poderoso e sonoro de toda a Bíblia.
Antes de pronunciar seu Amem a multidão angelical faz outro gesto inusitado: todos caem de joelhos perante o trono. Que impressionante é visualizar essa imensa multidão, todos prostrados. A postura típica dos anjos é de pé (7:11; 8:2-3). Somente aqui os anjos se ajoelham no Apocalipse. João utiliza duas frases para descrever a ação litúrgica dos anjos: eles se “prostraram” (epesan 5:8,14; 11:16; 19:4,10; 22:8), com o rosto em terra, diante do Cordeiro e “adoraram” (proskunesan 4:10; 5:14; 11:1,16; 14:7; 15:4; 19;4; 22:8) a Deus (7:11).
João destaca uma vez mais o ordenamento do céu em círculos concêntricos, mas agora incluindo os vencedores fieis. A multidão de anjos esta situada “em pé, ao redor do trono, dos anciãos e dos quatro seres viventes” (7:11). Aparentemente a descrição procede de fora para dentro, ocupando os anjos o círculo mais externo, quem sabe junto com a multidão de fiéis. O importante aqui, como em 5:11, é a incrível verdade que os anjos do céu sempre nos acompanham em nossa adoração a Deus.
Esta terceira resposta dos anjos é um sétuplo louvor a Deus, muito semelhante a que eles elevaram em 5:12. Enquanto a aclamação anterior foi dirigida exclusivamente ao Cordeiro (5:11-12), ela agora vai dirigida a Deus (quem sabe juntamente com o Cordeiro, cf. 7:9-10). Também, em vez da formula “digno eh” de 5:12, agora aparece um formato de sete atributos no nominativo. Esta aclamação começa e termina com um “’Amem”. 7:12 ainda agrega a frase “para todo o sempre” (cf. 4:9-10).
Eh evidente que o numero sete sugere uma adoração completa e perfeita, que os anjos estão especialmente qualificados a render a Deus. A presença do artigo (que não aparece na NVI em português) repetido antes de cada atributo (diferentemente de 5:12) destaca o concreto e enfático de cada perfeição de Deus, como uma espécie de superlativo.
Ainda que este louvor seja um florilégio dos termos mais exaltados da linguagem humana, deixam a impressão de ficarem curtos para expressar a grandeza de Deus. Todos estes substantivos, nem muitos mais, permitem mais que balbuciar um pouco o que é a grandeza de Deus.
Por “o louvor”, devemos entender aqui a adoração que nos devemos render a Deus, fonte de nossa salvação (7:10) e de toda a benção. A presença do artigo sublinha que isto não se refere a qualquer louvor, se não ao louvor supremo e a todas as bênçãos em conjunto. A nossa salvação procede da inesgotável beatitude de Deus mesmo, a plenitude de suas perfeições divinas, o que deve também evocar a plenitude de nossa adoração Deus por tudo que é e tem feito.
“A gloria” significa resplendor brilhante e radiante. A figura subjacente é a luz clara e deslumbrante. Doxa frequentemente expressa a presença de Deus manifestada.
A referencia a “a sabedoria” pode sinalar a onisciência de Deus em geral, mas especificamente a sabedoria de sua ação na história (Dn 2:20-21) e, sobretudo, em nossa salvação (Ef 3:10; 1 Co 1:24).
Seguem dois aspectos de nossa resposta a grandeza de Deus: “a ação de graças” e “a honra”. A resposta a graça (caris) de Deus é nossa atitude da mais profunda e constante gratidão (eucaristia cf. 2 Co 8-9), para não sermos acaristos (desagradecidos, ou desgracados) ante tanta graça. Por “a honra” podemos entender nosso reconhecimento público da grandeza e gloria de Deus.
Muito apropriado para uma aclamação de Deus que nos faz mais que vencedores (7:10), o louvor dos anjos culmina com duas expressões sobre a poderosa soberania de Deus. Há muita semelhança entre os campos semânticos de he dunamis e he iscus, de modo que se complementam para maior ênfase. Dunamis é o termo mais amplo, com ênfase na habilidade e capacidade de atuar. Deus se faz conhecer por sua dunamis (Ro 1:19-20; 9:17), cuja maior manifestação é a cruz (1 Co 1:18,24). A ênfase de iscus cai mais na forca, frequentemente física. Sinala a poderosa ação salvifica de Deus na história.
iii. O diálogo com o ancião (7:13-17)
Um pouco abruptamente, depois do louvor (7:10,12), João introduz uma conversação entre João e um dos anciãos. Este tipo de conversação era um mecanismo literário bastante comum no AT e na literatura apocalíptica. Aqui o diálogo é entre um ser celestial e o profeta (cf. 5:5). Esta passagem é uma das poucas do Apocalipse que explicam o significado de uma visão (cf. 1:20; 17:7-9), o que destaca sua importância e agudiza a atenção do leitor.
O ancião faz duas perguntas a João: “Quem são estes que estão vestidos de branco, e de onde vieram? ” João não sabe, mas esta seguro que o ancião pode explica-lo. O ancião responde com um poema com quatro estrofes de três linhas cada um (7:14b-17). O ancião responde às perguntas de João com uma só resposta: “Estes são os que vieram da grande tribulação” (14b). Depois responde a outra pergunta sobre os vestidos de branco. Finalmente descreve formosamente a felicidade eterna dos redimidos (7:15-17).
A frase “os que vieram da grande tribulação” parece ser mui especifica, mas seu sentido não é completamente claro. O artigo definido em posição atributiva (a tribulação, a grande) é enfático, e nos faz pensar na “grande tribulação” de que falam Marcos (13:9,24) e Mateus (24:21,29). Com nossas escatologias sistemáticas esta correlação parece muito natural e obvia, mas não está tão seguro até que ponto João de Patmos estaria pensando em estes mesmos esquemas.
As demais vezes que tlipsis (tribulação) ocorre no Apocalipse, ela se refere claramente aos atuais sofrimentos de João e de seus leitores (1:9; 2:9-10), ou a futuras perseguições deles mesmos (2:22). A única outra menção de uma “grande tribulação” (sem artigo, igual que Mt 24:21), se refere aos sofrimentos punitivos contra os cumplices de “Jezabel” em Tiatira, e não a outra época no fim da história. Ademais, João nunca utiliza a terminologia típica da grande tribulação (de Mr 13 e Mt 24): a abominação da desolação, as dores de parto, e a frase “a qual nunca houve nem haverá” como superlativo. João de Patmos descreve a crise escatológica em outros termos: fúria do dragão e seus aliados, os setenários da ira divina, o Armagedao etc. Isto indica que importantes aspectos do conceito tradicional da “grande tribulação” advém mais de nossa escatologia sistematizada que do texto bíblico.
Ainda que 7:14 poderia ser o único texto do Apocalipse que descrevesse o período final de sofrimento escatológico como “a grande tribulação” (com o artigo), é igualmente possível que João esteja referindo-se aqui não a um período especifico do futuro, se não a uma forma especifica de sofrer pela fé. O uso mais comum de tlipsis no NT, com raras exceções, se refere as aflições dos cristãos (na história, At 14:22) e, sobretudo, as aflições de Cristo. Paulo fala que suas próprios sofrimentos e aflições vão completando o que falta das tribulações de Cristo (Col 1:24), sem nenhuma referência a eventos futuros.
Ainda que esta passagem da por estabelecido que todos os redimidos tenham passado por “a grande prova”, não implica necessariamente que todos tenham sido mártires, nem tão pouco que somente mártires estarão com esta grande multidão. Já vimos que a multidão inumerável (7:9) representa todo o povo de Deus. Mas todo crente fiel esta exposto a possibilidade real de sofrimento (Jn 16:33; Mt16:24); “É necessário que passemos por muitas tribulações para entrarmos no Reino de Deus” (At 14:22; Nada de um evangelho fácil, de graça barata, para São Lucas!) Porque João vislumbra tempos de severíssima perseguição e escreve para animar valentia a candidatos ao martírio, aqui (como em 20:4-6) ele dá especial ênfase aos mártires, mas sem excluir os demais fieis (cf. Mt 24:29; Mr 13:24).
Nas duas ultimas linhas da primeira estrofe, o ancião explica como a multidão chegou a vestir vestidos brancos: “e lavaram suas vestes, e as alvejaram no sangue do Cordeiro” (7:14b). Já vimos que a roupa limpa (ou suja 3:4; cf. Is 64:6) é um tema frequente no Apocalipse (3:4-5,18; 22:14; cf. 6:11; 19:14). Em geral significam um caráter puro (Ap 3:4-5; 1 Co 6:11; 19:8,14), mas também que pertencem a esfera celestial (Ap 4:4; 6:11). Ademais, neste contexto cultural, as roupas brancas também podem ser entendidas como vestiduras sacerdotais (cf. 1:5; 5:10; ver 7:9).
Bauckham propõem como chave para 7:11 a sua relação com 12:11, (e menos com 1:5 ou 5:9). Nenhuma outra passagem mostra mais profundamente o sentido teológico do martírio cristão e sua estreita identificação com o sacrifício de Cristo. Este hino (12:10-12), em meio da luta contra o dragão, celebra a tríplice vitória de Cristo. O triunfo celestial de Miguel contra o dragão e suas hostes (12:7-9) se atribui a Deus (12:10, ampliando 7:12) e ao sangue do Cordeiro (12:11; 7:14). Então, abruptamente, e com pouco respeito a sintaxe, o hino muda para a terceira pessoa plural, para introduzir uns atores que não pareciam ter algo a ver coma derrota do dragão por Miguel: “eles (os mártires cristãos) o venceram pelo sangue do Cordeiro…diante da morte, não amaram a própria vida” (12:11).
Quando os cristãos fieis, como membros orgânicos do corpo de Cristo, completam “no seu corpo que resta das aflições de Cristo” (ou tribulações, Col 1:24), eles se tornam participantes reais da própria morte dele; literalmente, “morrem com Cristo”. Ainda que para nossa salvação o sacrifício de Cristo foi completo (e neste sentido não lhe faltam sofrimentos), é como se aqueles que tomam a sua cruz para “seguir o Cordeiro por onde for”, renovam a morte do próprio Jesus, a vivem novamente em seus próprios corpos, e atualizam a eficácia do testemunho (marturia) dele. Mais do que somente a morte física deles, foi por seu sofrimento até o fim (Ap 2:13; 12:17) que embranqueceram suas túnicas. Mas o valor de seu testemunho se deriva do testemunho do Cordeiro (12:11).
Isto não deve ser mal-entendido como se nossa salvação fosse pelas obras, em sentido pelagiano, mas também não como graça barata. Quem se alista como seguidor de Jesus Cristo, compromete sua vida inteira. “Quando Cristo nos chama, nos chama a morrer” (Bonhoeffer). A fé em sentido bíblico é muito mais que mera profissão verbal; é entrega total, até as últimas consequências.
Em seu livro El Llamado Ineludible, Cap 7 (“O cristão testemunha-mártir”, 75-83), Kenneth Strachan faz comentários profundamente desafiantes sobre a relação essencial entre martírio e missão. Citando o exemplo de Dietrich Bonhoeffer, Stachan escreve: “Jesus Cristo chama seus discípulos a este tipo de testemunho. Os tempos exigem esta classe de testemunho… O mundo do século vinte (e um) necessita desesperadamente o cristão do primeiro século, o testemunha-mártir que, em última análise, é o único tipo de testemunho que pode representar verdadeiramente os Servo Sofredor de Deus… Por que o chamado a testemunhar é um chamado para aceitar a morte.”
A segunda estrofe da resposta do ancião (7:15) descreve a relação dos fieis vitoriosos com Deus. Eles estão diante da presença do Senhor rendendo-lhe um culto perpetuo, e estão cobertos por seu tabernáculo. Já lavados e santificados podem receber a revelação e o pacto de Deus (Ex 19:10,14: 24:8); lavados, como os antigos sacerdotes de Israel (Ex 19:4; 30:18-21; 40:12,30-32; Lv 8:6) já podem estar na presença de Deus e celebra-la.
O privilegio dos redimidos é incalculavelmente grande. Ninguém podia suspeitar que ao majestoso cenário celestial do Apoc 4-5 veriam incorporar-se uma imensa multidão de crentes humanos. Igual a outra multidão (os milhares e milhões de anjos 5:11; 7:11; 8:2), estes também estão de pé diante de Deus e o adoram incessantemente (7:15). E mais: rendem culto a Deus “em seu templo”. O naus aqui significa o interior do templo (cf. 11:1-2,19), diferentemente do hieron que se referia aos recintos inteiros do templo (cf. 11:1 átrios externos). O privilegio de entrar no nous se limitava estritamente aos sacerdotes (1 Cr 9:33).
Quão revolucionário então é o quadro de Apocalipse 7. Esta multidão multinacional e pluricultural (7:9), de uma igreja majoritariamente gentil, salta todas as barreiras e entra diretamente a plena presença de Deus para “servirem de dia e de noite no seu santuário.” Não permanece nenhuma segregação racista nem discriminação machista, nem dicotomia entre clero e leigo. Igual aos quatro seres viventes, os vinte e quatro anciãos, e os milhões de anjos, todos os redimidos estão ante a mesma presença de Deus no lugar santíssimo (cf.11:19).
A última sentença da segunda estrofe oferece uma nova promessa: “e aquele que esta sentado no trono estendera sobre eles o seu tabernáculo (7:15). Esta nova promessa se vincula com todo o motivo exodiano que percorre esta passagem (inclusive a festa das cabanas) e também com a menção anterior ao nous. Originalmente o santuário era um tabernáculo, e em Apoc 15:5 o templo se descreve como o “tabernáculo da aliança”.
Que Deus “tabernacularia” com seu povo era um elemento do pacto de Yaveh com Israel (Lv 26:11; Sal 68:16) e uma promessa repetida muitas vezes no AT (Ez 37:27; Zac 2:10-13; cf. Sof 3:17). Chama a atenção que em muitos destes textos, como em Ap 7:14-16, esta presença divina segue a purificação do povo (Is 4:2-6; Ez 43:7; a festa das cabanas foi precedida pelo dia de expiação). Como em algumas outras passagens, aqui Deus põem sua tenda não no meio do povo, se não sobre ele (7:15), como abrigo ou proteção (Is 4:5-6).
O verbo skenoo tinha uma fascinação especial para os judeu-cristãos devido a seu som mui similar a palavra “Chekina”, a “nuvem de gloria” que manifestava a presença divina. Essa correlação, na base da assonância das duas palavras y a relação do tabernáculo com o deserto, faz o nexo entre o conceito de tenda, de santuário e de gloria (doxa 7:12).
A terceira estrofe da resposta do ancião (7:16-17) é um formoso florilégio de promessas do AT que revela a extraordinária destreza de João em tecer motivos tradicionais numa visão criativa e nova. O mosaico começa com uma clara alusão a Isaias 49:10 e termina com Is 25:8. Ambos originalmente do contexto do exilio e o retorno da Babilônia.
A promessa de que “nunca mais terão sede” (7:16a; Is 49:10) era importante para os exilados em seu retorno da Babilônia. Para as circunstancias duras e perigosas da peregrinação, Deus promete uma abundante provisão de agua e alimento (Is 41:17-20; 43:19-20; 55:1). De fato, estas passagens vão bem mais além do retorno de exilados para começar a vislumbrar uma criação totalmente nova (Is 43:18-20; 65:17-19) que será de abundancia para todos. Podemos entender que a releitura escatológica em Apocalipse 7:16 vai muito além do seu sentido literal, sinalizando a satisfação perfeita dos anelos mais profundos do coração redimido, sua fome e sede de justiça e do reino, seu anelo por santidade e plena realização humana em Cristo (Jo 4:14; 6:35; 7:37).
Também a promessa de que “não os afligira o sol, nem qualquer calor abrasador” (7:16) correspondia a um risco muito real para os exilados durante a longa marcha de regresso. O sol tropical e o vento abrasador do oriente (o sirocco), ameaçavam a própria vida dos peregrinos. Já que estes capítulos de Isaias interpretam o retorno dos exilados como um novo êxodo, estas alusões reforçam indiretamente a referência já sinalizada a festa das cabanas.
A resposta do ancião termina em um tom profundamente pastoral: “pois o Cordeiro que está no centro do trono será o seu pastor; ele os guiará as fontes de agua viva. E Deus enxugara de seus olhos toda a lagrima” (7:17). Junto com o verso anterior, a passagem recolhe em poucas frases toda a dimensão pessoal e intima da esperança judeu-cristã. O texto sublinha que o Cordeiro-feito-pastor nos cuidara a partir do trono do universo. E isto se sinaliza por um paralelo com Deus Pai; “aquele que está assentado no trono estendera sobre eles o seu tabernáculo” (7:15) e “o Cordeiro que esta no centro do trono será o seu pastor” (7:17). Desde o puro centro do governo do universo, aquele que disse que “Me foi dada toda a autoridade nos céus e na terra” (Mt 28:18), cuida e cuidara o seu povo.
Um aspecto importante da esperança messiânica era a promessa de um pastor como Davi. Segundo Ez 34 os governantes de Israel haviam sido pastores maus, cruéis e injustos (34:1-10), por isto mesmo o próprio Deus se tornaria o pastor de seu povo (34: 11-22). Despois Deus fara voltar um pastor como Davi e o colocara como único e fiel pastor e governante (34:23-24). Esta passagem de Ezequiel 34 parece haver inspirado o discurso de Jesus sobre o bom pastor (Jo 10) como também este texto em Apocalipse 7:17. Como sinala Comblin, o Apocalipse combina a figura do pastor de Ezequiel com a do Servo Sofredor de Isaias. Cristo é o bom pastor que da sua vida pelas ovelhas e o Cordeiro que as cuida ternamente.
A seguinte frase especifica duas funções especiais do pastor: guiar as ovelhas e alimenta-las. Originalmente a frase “aguas vivas” significava agua corrente, ou mesmo, agua pura que saltava de uma fonte, em contraste com agua de cisterna ou mesmo estancada (Gen 25:19; Lv 4:5); e aguas perenes de fontes que não se secavam no verão oriental (cf. Sal 1:3; 23:2). Jer 2:13 (cf. 17:13), que faz o contraste entre “cisternas” (rachadas) e Deus como “fonte de agua viva”. Em outras passagens “fonte de agua viva” ou somente “agua viva” se refere a Deus, ao Espirito, a sabedoria ou a Tora.
Nos livros proféticos a imagem de agua viva toma dimensões futuras, escatológicas (Is 58:11, semelhante a Ap 7:17; Is 33:21; 41:17-18; 43:19-20; 44:3; 48:21). Ez 47:1-12 descreve um rio que procede da entrada do templo, que torna a aguas do Mediterrâneo doces, e “onde o rio fluir tudo vivera” (47:9). Mas não são somente uma realidade futura. Jesus falou da agua da vida (Jo 4:10-15; 7:37-39) como símbolo da salvação (Jo 4:10-11,14) e do Espirito Santo (Jo 7:19). Segundo a interpretação mais comum de Jo 7:38, pela plenitude do Espirito dos próprios crentes brotarão rios de agua viva. Neste caso, a Escritura aludida em Jo 7:38 poderia ser Is 58:11: “O Senhor te guiara sempre… Voce sera como um jardim bem reagdo, como uma fonte cujas aguas nunca faltam.”
Todo este hino termina com uma nota terna e maternal: “E Deus enxugara dos seus olhos toda a lagrima” (7:17c). Novamente o sujeito ativo é Deus, como em 7:15. Aqui é natural pensar na figura da mãe, pois ela principalmente (ainda que não exclusivamente) limpa as lagrimas de seu filho ou filha (cf. Is 49:15). Salmo 84:6 (“ao passarem pelo vale de lagrimas, fazem dele um lugar de fontes”) sugere um possível jogo de palavras com a frase anterior: em vez de lagrimas (aguas de tristeza), haverá mananciais de salvação e de vida.
O céu será uma festa. É evidente que no transfundo de Apoc 7:9-17 esta a grande festa das cabanas. Era uma festa tanto santa como alegre, mostrando-nos que santidade e seriedade não são sinônimos. Antes santidade e alegria são gêmeas. A consigna era: “Alegrem-se perante o Senhor… e sua alegria será completa” (Dt16:11,14-15; cf. 12:7,12, 18; Lv 23:40; Ne 8:12). A festa das cabanas era uma semana inteira de alegria transbordante, por isto mesmo, muito idônea para a “plenitude de alegria” que a presença do Senhor traz (Sal 16:11). Para vislumbrar um pouco a felicidade eterna, recordemos as festas mais alegres de nossos povos!
Alguns aspectos da alegria especial desta festa merecem destaque. Junto com a experiência de morar em cabanas (chocas) durante uma semana, a procissão diária da agua, ambas já descritas, era muito popular o rito de iluminação, um verdadeiro festival de luz. Cada noite da festa se acendiam quatro castiçais enormes no átrio das mulheres. As mechas, formadas com usadas vestes sacerdotais, imersas em azeite, quando acesas, produziam uma iluminação tão intensa que os pátios em toda a cidade refletiam esta luz que emanava do templo.
O povo se congregava no átrio das mulheres – para bailar toda a noite. Acompanhados por uma orquestra levita de flautas, alaúdes e címbalos, todos cantavam e dançavam sete dias seguidos. Ate o amanhecer. (Precursor do carnaval brasileiro? Nota do tradutor.) Belas donzelas graciosas buscavam cativar os rapazes, e varões piedosos executavam suas danças de tochas. Tudo era alegria, reinando a confraternização. Israel dava uma lição ao mundo do que é uma festa. Assim também será a vida eterna.
A festa das cabanas nos chama a um estilo de vida mais simples e solidário. Para melhor captar a festa das cabanas, imaginemos que se realizara hoje entre nós, e todas as famílias passassem a viver em chocas por sete dias nos pátios de suas casas. Imagine-se São Paulo: os bancos e as lojas fechadas, os shoppings abandonados, as propinas casas (grandes ou pequenas) desocupadas, com todo mundo indo ao pátio para uma semana de camping ao ar livre, cozinhando a lenha. Nos custaria acostumar-nos; provavelmente muitos teriam um ataque cardíaco ou uma crise de nervos.
Para muitas pessoas, sua casa é o sonho de suas vidas, e a deusa de sua devoção. Quanto bem nos faria passar uma semana anualmente no pátio. Como o dia de descanso significava (e significa) libertação das demandas do trabalho, esta festa significa uma libertação do domínio da casa e dos bens materiais. Nos recorda que nossas casas não são mais do que cabanas em nossa caminhada “a nossa habitação celestial” (1 Co 5:2). Se aqui somos peregrinos, devemos desprender-nos de nossos bens, desmitizar a idolatria materialista que permeia nossa cultura, compartilhar alegremente com os que tem menos e fazer de nossa vida um projeto de mordomia sacrificial e alegre.
Esta festa nos recorda que uma casa não somente é bonita por ser luxuosa, nem que é feia por ser humilde. Zorillo se atreve a falar da “magnificência das cabanas”, porque nelas Deus morava com seu povo e sobre ela pairava a chequina divina. Em quantas mansões Deus esta ausente, e ausente tudo o que embeleza a vida, enquanto numa cabana humilde pode resplandecer a gloria divina.
Nesta festa todos eram iguais por uma semana. O rico não podia dizer nesta semana, “minha cabana é melhor do que a tua”: e nenhum pobre teria de sentir vergonha de sua cabana. O ideal divino, “que haja igualdade” (2 Co 8:13-14; At 2:44-45: 4:32-34), se cumpre pelo menos por uma semana ao ano. E em isto, se antecipa a Nova Jerusalém, cujas riquezas são de todos igualmente.