CAPÍTULO 7 – O Comentário do Apocalipse de Juan Stam

CAPÍTULO 7

  1. Um duplo Interlúdio: Deus protege os fieis (7:1-17)

João nos frustra com a postergação da abertura do sétimo selo para 8:1. Mas é evidente que a urgente pergunta com a qual termina o Cap. 6 (sexto selo), é a chave definitiva para a interpretação do Cap. 7: Quem pode permanecer de pé no grande dia do juízo? O Cap. 7 responde com duas visões dos que sim poderiam permanecer de pé perante o juízo divino.

Este interlúdio é um verdadeiro cântico de vitória em duas estrofes. Aqui vemos plenamente a proteção divina dos fieis (7:1-8) e a gloria de sua vitória final (7:9-17). Frente a consternada confusão dos ímpios (6:15-17), vemos agora a inabalável confiança no Senhor que vive nos fieis.

Teologicamente o tema central deste Cap. é a igreja. São mais bem duas visões do povo de Deus. Em vez de nos deparamos com o fim do mundo no fim do sexto selo, nos aparecem duas visões do povo de Deus. A promessa de proteção e de vitória é marcadamente comunitária, e não meramente individualista. A igreja é o instrumento da ação de Deus para conduzir a história rumo a seu reino. (O interlúdio entre a sexta e a sétima trombeta se dedicara também a igreja e sua missão).

Esta primeira visão, depois de uma breve cena em que anjos retém ventos de juízo (7:1-3), João vê o número dos fieis selados (7:4-8). Em seguida (7:9-17), João vê uma multidão de redimidos na presença de Deus. Podemos dizer que este capitulo começa com um pouco de “meteorologia antiga” (7:1-3), procede a uma passagem curiosamente matemática (7:4-8), e termina com uma impressionante cena litúrgica (7:9-17). A primeira visão tem a ver com os crentes na terra (igreja militante); a segunda com a igreja celestial depois da grande tribulação (igreja triunfante).

a. Primeiro Interlúdio: os 144.000 selados do Senhor (7:1-8)

i. Cenário introdutório (7:1-3)

Aqui João apresenta uma cena muito gráfica. Quatro anjos, parados sobre os quatro ângulos da terra, se esforçam para deter quatro ventos de juízo. Do oriente aparece um quinto anjo que traz em suas mãos o selo de Deus e ordena os quatro anjos de não fazer qualquer dano ate que termine de selar todos os servos de Deus. Uma vez que nem estes anjos nem seus ventos aparecem posteriormente, eles permitem a João acrescentar dramaticidade a selamento dos fiéis. João adaptou uma fonte judaica de seu tempo? O predomínio do numero quatro, que corresponde a natureza, dá um contexto cosmológico e global ao juízo e a proteção divina.

Um quinto anjo, vindo do oriente, onde Deus morava (Ez 43:4, Is 42:2), proclama uma intervenção especial de Deus para postergar o juízo. Porque primeiro havia que selar os servos de Deus. (João faz uma releitura de Ez 7-11). É interessante notar que somente aqui o juízo não vem depois da demora. João da dramaticidade para destacar que os fiéis estão selados sob a proteção divina. O juízo vira depois, mas sob o simbolismo das trombetas.

O selo, mencionado muitas vezes no NT (2 Co 1:22, Ef 1:13, 4:30), aqui sinala a proteção especial de Deus aos fieis ante os acoites das trombetas e das tacas (“a ira do Cordeiro”). Estas exceções dos fiéis aos juízos das trombetas e das tacas se moldam nas plagas do Egito (Ex 8:22, 9:4,26; 10:13; 11:7).

ii. O senso dos selados do Senhor (7:4-8)

Com 7:4 o drama que o antecedeu desaparece do relato. O que aparece são três elementos ausentes de 7:1-3: uma forte ênfase matemática, uma audição em vez de uma visão e uma linguagem judaica (as doze tribos de Israel). Mas é importantíssimo notar que em 7:3 se nos informa que os que serão selados são “os servos de nosso Deus,” e não somente os judeus. Esta frase no restante do Apocalipse nunca se refere somente ao povo judeu.

Eh obvio que todos os números desta passagem devem entender-se simbolicamente. Doze sinala o povo de Deus; o quadrado, o completo; mil, imenso, totalmente completo. Similares medidas aparecem posteriormente para descrever a estrutura quadrada ou cuba, da Nova Jerusalém (21:16-17); a cidade de Deus (Apoc 21), que correspondem a todo o povo de Deus de Apoc 7.

Por outra parte, havia muitos séculos as tribos do Norte haviam desaparecido com a queda de Samaria em 721/2 a.C. As únicas tribos que haviam sobrevivido as vicissitudes históricas eram Judá, Benjamim e Levi. Além disto, as doze tribos desde o início não eram de sangue puro; duas delas procediam de uma mãe egípcia, esposa de José, chamada Azenate, mãe de Efraim e Manasses (Gn 41:45); além disto uma “multidão mista” se havia agregado a estas tribos. Em verdade, havia séculos que “as doze tribos” se havia reduzido a um conceito puramente abstrato, de peso teológico muito maior que genealógico.

Uma característica notável de 7:4-8 é a total simetria numérica das tribos. Cada uma com exatos 12.000. Ainda que todas as tribos existissem, jamais seriam de população igual. Ademais para as tribos existentes como Judá, ou para o judaísmo do tempo final, a soma de 12.000 parecem mui poucos. Aqui podem iluminar-nos os sensos de Nm 1,2 e 26, que dão um total muito maior (603550) de varões adultos, ou 601730.

Outra anomalia desta lista é que ela não corresponde a nenhuma das que aparecem no AT. A lista de Apoc 7 tem cinco peculiaridades:

  1. Judá vem em primeiro lugar. Não Rubem, o primogênito da família. Judá seria o quarto. Judá poderia ser o primeiro na contagem de sul a norte, mas a lista não segue a ordem geográfica. Evidentemente João coloca Judá em primeiro lugar, por ser a tribo do Messias.
  2. Esta lista inclui Levi. Ainda que Levi era filho de Jacó, não se assignou aos levitas sacerdotes nem território (Nm1:49), nem serviço militar. Foi substituído por dois filhos de José, cujo nome ficou de fora.
  3. Paradoxalmente, a lista de Apoc 7:4-8 inclui José, mas também seu filho Manasses. É obviamente impossível que tanto o pai como o filho sejam uma tribo. Esta anomalia chocante nunca se pode explicar.
  4. A lista omite Efraim, a tribo mais importante do reino do Norte. Isto é muito estranho porque Jacó (Gen 48) bendisse com prioridade a Efraim, o filho mais novo de José, em detrimento a Manasses. Realmente Efraim chegou a ser a segunda tribo mais numerosa, depois de Judá, e seu nome era frequentemente sinônimo do reino do Norte (Israel) ou mesmo de todo Israel. (Os 13:1ss) (Vale a pena notar que Efraim se inclui na lista escatológica de Ezequiel (48:5-6); para Ezequiel, a reunificação de Israel consistiria precisamente no reencontro da “vara de Efraim” com o “vara de Judá” num só povo escatológico (Ez 37:15-23). Isto torna surpreendente a sua ausência da lista de Apoc 7:4-8.)
  5. Finalmente, esta lista omite a tribo de Dan. Isto é outro mistério, especialmente porque na lista das tribos escatológicas de Ez 48 a tribo de Dan ocupa o primeiro lugar (48:1). Já que ambas as listas são escatológicas, se as tomássemos literalmente, estariam em contradição, e uma estaria equivocada. Não existe nenhum texto judeu antigo que afirma que o Anticristo sairá da tribo de Dan, razão pela qual se excluiria da restauração das tribos de Israel.

João poderia ter utilizado uma fonte judaica para sua lista. Mas o que parece mais apropriado é que João haja esculhambado esta lista tão escandalosamente para sinalar que ele não se referia literalmente a nação judaica, mas ao novo povo de Deus. É um ensino comum do NT que a igreja é o novo Israel, e que os crentes cristãos são os verdadeiros filhos e filhas de Abraão. A igreja é o sacerdócio real, a nação santa, e a posse adquirida (Ap 1:6; 5:10; 1Pe 2:9-10). Neste sentido a igreja pode ser descrita simbolicamente como “”as doze tribos que estão em diáspora (Tg 1:1).

Isto também implica que as duas visões do Cap. 7 descrevem o mesmo grupo. A primeira visão, situada na terra, nos mostra os selados de Deus antes da tribulação vindoura. A segunda visão, no céu, os mostra depois desta tribulação, da qual saem vencedores (muitos, se não todos, pelo martírio).

b. Segundo interlúdio: a multidão multicultural inumerável (7:9-17)

A segunda visão do cap. 7 dificilmente poderia ser mais diferente da primeira. Em vez de somente ouvir, João agora vê. Em vez da fria repetição matemática de estatísticas, João agora contempla um cenário tão cheio de personagens, que ate parece um quadro de Bruegels. Seu significado central poderia resumir-se nas belas palavras do salmista: “Tu me faras conhecer…a alegria plena da tua presença, eterno prazer a tua direita. (Sal 16:11).

No transfundo desta passagem está presente a festa das cabanas (Lv 23:33-44) quando anualmente os israelitas “…se alegrarão (festejarão) perante o Senhor, seu Deus, por sete dias.” Esta celebração culminava todo o ciclo festivo do povo hebreu, depois da última colheita do ano, e era a festa mais alegre de todas. Se caracterizava pela dança das donzelas com vestidos brancos, e os rapazes cantando e brandeando tochas acesas. A festividade era tamanha, que dizia a Michna: “Quem não viu a alegria desta festa, nunca viu alegria na vida.” Ao ouvirem (ou lerem) Apoc 7:9-17 os judeu-cristãos reviviam o gozo festivo desta ocasião. E nos, para entrarmos empaticamente nesta visão, faríamos bem por recordar as festas que mais nos fascinaram na infância.

Igual a primeira visão (7:1-8), a segunda também responde à pergunta de 6:17: “Quem poderá suportar”, ou permanecer de pé, no dia do juízo? Estes vencedores já foram vistos antes da hora da prova, selados por Deus (7:4-8); agora são vistos depois da tribulação, triunfantes na presença de Deus. Por terem sidos fieis, estão de pé diante do trono, junto com todos os anjos.

Esta passagem pode ser vista como uma continuação, não esperada, da liturgia de 4-5. Mas há uma novidade: agora os próprios fieis estão dentro dos círculos concêntricos de adoração. Em contraste com 4-5, o que é humano agora entra no cenário que antes havia sido exclusivamente celestial. Os celebrantes litúrgicos que haviam aumentado de quatro (4:8), a vinte e quatro (4:11), a vinte e oito (5:8), a milhares de milhões (5:11) e a toda a criação (5:13), agora especificamente incluem os redimidos.

i. A visão da multidão multicultural (7:9-10). Se a primeira visão do cap. 7 se relaciona com Jacó e seus filhos como uma releitura da promessa da restauração escatológica das tribos, a segunda visão é uma releitura crista da promessa a Abraão de uma descendência como pó (Gn 13:16; 28:14), as areias do mar e as estrelas do céu (Gn 15:5; 22:17; 32:12-13). Esta descrição do povo de Deus como multidão inumerável e internacional agora se cumpre em Cristo.

A promessa a Abraão é também enfaticamente internacionalista. Deus anunciou que a prole de Abraão e Sara seria uma benção a todas as nações (Gn 12:2-4; 22:18; 28:14), em contraste com a maldição da prepotência de Babel (Babilônia) como superpotência imperialista (Gn 11:1-9). Dos descendentes da Abraão sairiam não somente Israel, se não outras nações e príncipes (Gn 17:6,16,20; 21:13; 28:3). Israel surgiu por ação divina do meio dos povos (Gn11:10-32), para se dirigir aos povos como canal de benção e de vida (Gn 50:20).

No Apocalipse este internacionalismo se expressa geralmente pela formula quadrupla que encontramos aqui: “de todas as nações, tribos, povos e línguas” (9). Esta formula aparece pouco no AT e na literatura apocalíptica, mas é frequente (em forma tripla) no livro de Daniel (Dn 3:7; 3:3,4,29; 4:1; 6:25; 7:14). João viu esta grande multidão “de pe, diante do trono e do Cordeiro (7:9). Assim, os redimidos inumeráveis de todos os séculos tomam seu lugar no cenário celestial, junto com os quatro viventes, os anciões, e os milhares de milhões de anjos para acrescentar louvor ao culto celestial (4:4-5:12). Estar “’em pe” diante de Deus significa aceitação pelo Senhor (cf. 6:17), acesso a sua presença, e participação na adoração celestial (14:1-3). Significa a vida em sua mais plena realização (Sal 16:11).

Aqui novamente aparecem “as vestes brancas” (cf. 3:4-5, 8: 4:4; 6:11). E provável que este simbolismo tenha um significado composto de muitas conotações: pureza, vitória (2 Mac 11:8; Ap 6:2), gozo e festa (Ecl 9:8), vestido de corte real, justificação e glorificação (3:5.18; 6:11; 19:8,14). Igual que 6:11, 7:13-14 e 22:114, este texto (7:9) utiliza o termo stole, uma vestimenta longa e larga. Na LXX se usava para as vestimentas sacerdotais (Ex 28:2; frequente em Ex, Lv e Nm), o que se enquadra com o texto litúrgico de 7:15.

Os vestidos brancos geralmente se combinavam com levar palmas (7:9), o que era típico na festa das cabanas. (Lv 23:39-40; Neh 8:14-17; 2 Mac 10:6-10). O povo saia aos montes para buscar ramos e palmas para construir a suas chocas (Neh 8:15). A certa altura da festa se batiam as ramas e as palmas, levando-as em alegre celebração. Aos agitarem as palmas recitavam o Sal 118, aumentando a forca de suas vozes ao chegarem ao v.25.

O grito dos redimidos: “A salvação pertence a nosso Deus, que esta sentado no trono, e ao Cordeiro” (7:10). A frase cita uma afirmação frequente nas Escrituras hebraicas (Sal 3:8; 37:39; Jon 2:9; cf. Sal 18:46; 27:1; 118: 14-15,25). Em geral os termos bíblicos para “salvação” significam “vitória”, e aqui os fieis vitoriosos gritam com jubilo, em alta voz (cf. 6:10), para exaltar a quem os fez triunfar. No Apocalipse soteria sempre significa “vitória” (7:10; 12{10; 19:1).

A novidade aqui, que vai além do AT, é a inclusão do Cordeiro neste grito de triunfo. O Cordeiro triunfou na cruz (Ap 5:5-7), e sua vitória é a nossa salvação. Agora os crentes vencedores reconhecem que a forca de seu triunfo não é própria deles, mas é do Cordeiro que venceu. Eles triunfaram no poder do Deus soberano e participam, mediante seu próprio sacrifício vencedor, no sacrifício vencedor do Cordeiro (7:14; !2:11). Em seu sacrifício o Cordeiro realiza novamente sua vitória definitiva.

Muitos comentaristas encontram aqui uma referencia a exclamação, “Hosana” da língua hebraica. Este termo (Sal 118:25) gradativamente se transformou de uma suplica (“Salva, Yahve”) a uma exclamação (Yahve salva!), associado a recitação do Salmo 118 (Sals Halel 113 a 118) na festa das cabanas. Não cabe duvida alguma que esta festa de muitíssima alegria calou profundamente no ânimo do povo judeu. E é logico supor que ao lerem esta passagem, junto com as referencias aos vestidos brancos e as palmas, os leitores judeu cristãos houvessem recordado a mais exuberante festa da sua tradição.

ii. A adoração dos anjos (7:11-12)

Eh tão firme e segura a declaração dos redimidos (“A salvação=vitória pertence (vem de) nosso Deus”, 7:10), que imediatamente o céu ressoa com um “Amem” unanime de todos os milhares de anjos (7:12; cf. 5:11). Este é o segundo Amem nesta liturgia celestial em dois atos. O primeiro foi muito pequeno, dos quatro seres viventes que culminou com o primeiro ciclo litúrgico (5:14). Este segundo Amem é imenso, ressonante e em alto som, no início do segundo ato. Este é o “Amem” mais poderoso e sonoro de toda a Bíblia.

Antes de pronunciar seu Amem a multidão angelical faz outro gesto inusitado: todos caem de joelhos perante o trono. Que impressionante é visualizar essa imensa multidão, todos prostrados. A postura típica dos anjos é de pé (7:11; 8:2-3). Somente aqui os anjos se ajoelham no Apocalipse. João utiliza duas frases para descrever a ação litúrgica dos anjos: eles se “prostraram” (epesan 5:8,14; 11:16; 19:4,10; 22:8), com o rosto em terra, diante do Cordeiro e “adoraram” (proskunesan 4:10; 5:14; 11:1,16; 14:7; 15:4; 19;4; 22:8) a Deus (7:11).

João destaca uma vez mais o ordenamento do céu em círculos concêntricos, mas agora incluindo os vencedores fieis. A multidão de anjos esta situada “em pé, ao redor do trono, dos anciãos e dos quatro seres viventes” (7:11). Aparentemente a descrição procede de fora para dentro, ocupando os anjos o círculo mais externo, quem sabe junto com a multidão de fiéis. O importante aqui, como em 5:11, é a incrível verdade que os anjos do céu sempre nos acompanham em nossa adoração a Deus.

Esta terceira resposta dos anjos é um sétuplo louvor a Deus, muito semelhante a que eles elevaram em 5:12. Enquanto a aclamação anterior foi dirigida exclusivamente ao Cordeiro (5:11-12), ela agora vai dirigida a Deus (quem sabe juntamente com o Cordeiro, cf. 7:9-10). Também, em vez da formula “digno eh” de 5:12, agora aparece um formato de sete atributos no nominativo. Esta aclamação começa e termina com um “’Amem”. 7:12 ainda agrega a frase “para todo o sempre” (cf. 4:9-10).

Eh evidente que o numero sete sugere uma adoração completa e perfeita, que os anjos estão especialmente qualificados a render a Deus. A presença do artigo (que não aparece na NVI em português) repetido antes de cada atributo (diferentemente de 5:12) destaca o concreto e enfático de cada perfeição de Deus, como uma espécie de superlativo.

Ainda que este louvor seja um florilégio dos termos mais exaltados da linguagem humana, deixam a impressão de ficarem curtos para expressar a grandeza de Deus. Todos estes substantivos, nem muitos mais, permitem mais que balbuciar um pouco o que é a grandeza de Deus.

Por “o louvor”, devemos entender aqui a adoração que nos devemos render a Deus, fonte de nossa salvação (7:10) e de toda a benção. A presença do artigo sublinha que isto não se refere a qualquer louvor, se não ao louvor supremo e a todas as bênçãos em conjunto. A nossa salvação procede da inesgotável beatitude de Deus mesmo, a plenitude de suas perfeições divinas, o que deve também evocar a plenitude de nossa adoração Deus por tudo que é e tem feito.

“A gloria” significa resplendor brilhante e radiante. A figura subjacente é a luz clara e deslumbrante. Doxa frequentemente expressa a presença de Deus manifestada.

A referencia a “a sabedoria” pode sinalar a onisciência de Deus em geral, mas especificamente a sabedoria de sua ação na história (Dn 2:20-21) e, sobretudo, em nossa salvação (Ef 3:10; 1 Co 1:24).

Seguem dois aspectos de nossa resposta a grandeza de Deus: “a ação de graças” e “a honra”. A resposta a graça (caris) de Deus é nossa atitude da mais profunda e constante gratidão (eucaristia cf. 2 Co 8-9), para não sermos acaristos (desagradecidos, ou desgracados) ante tanta graça. Por “a honra” podemos entender nosso reconhecimento público da grandeza e gloria de Deus.

Muito apropriado para uma aclamação de Deus que nos faz mais que vencedores (7:10), o louvor dos anjos culmina com duas expressões sobre a poderosa soberania de Deus. Há muita semelhança entre os campos semânticos de he dunamis e he iscus, de modo que se complementam para maior ênfase. Dunamis é o termo mais amplo, com ênfase na habilidade e capacidade de atuar. Deus se faz conhecer por sua dunamis (Ro 1:19-20; 9:17), cuja maior manifestação é a cruz (1 Co 1:18,24). A ênfase de iscus cai mais na forca, frequentemente física. Sinala a poderosa ação salvifica de Deus na história.

iii. O diálogo com o ancião (7:13-17)

Um pouco abruptamente, depois do louvor (7:10,12), João introduz uma conversação entre João e um dos anciãos. Este tipo de conversação era um mecanismo literário bastante comum no AT e na literatura apocalíptica. Aqui o diálogo é entre um ser celestial e o profeta (cf. 5:5). Esta passagem é uma das poucas do Apocalipse que explicam o significado de uma visão (cf. 1:20; 17:7-9), o que destaca sua importância e agudiza a atenção do leitor.

O ancião faz duas perguntas a João: “Quem são estes que estão vestidos de branco, e de onde vieram? ” João não sabe, mas esta seguro que o ancião pode explica-lo. O ancião responde com um poema com quatro estrofes de três linhas cada um (7:14b-17). O ancião responde às perguntas de João com uma só resposta: “Estes são os que vieram da grande tribulação” (14b). Depois responde a outra pergunta sobre os vestidos de branco. Finalmente descreve formosamente a felicidade eterna dos redimidos (7:15-17).

A frase “os que vieram da grande tribulação” parece ser mui especifica, mas seu sentido não é completamente claro. O artigo definido em posição atributiva (a tribulação, a grande) é enfático, e nos faz pensar na “grande tribulação” de que falam Marcos (13:9,24) e Mateus (24:21,29). Com nossas escatologias sistemáticas esta correlação parece muito natural e obvia, mas não está tão seguro até que ponto João de Patmos estaria pensando em estes mesmos esquemas.

As demais vezes que tlipsis (tribulação) ocorre no Apocalipse, ela se refere claramente aos atuais sofrimentos de João e de seus leitores (1:9; 2:9-10), ou a futuras perseguições deles mesmos (2:22). A única outra menção de uma “grande tribulação” (sem artigo, igual que Mt 24:21), se refere aos sofrimentos punitivos contra os cumplices de “Jezabel” em Tiatira, e não a outra época no fim da história. Ademais, João nunca utiliza a terminologia típica da grande tribulação (de Mr 13 e Mt 24): a abominação da desolação, as dores de parto, e a frase “a qual nunca houve nem haverá” como superlativo. João de Patmos descreve a crise escatológica em outros termos: fúria do dragão e seus aliados, os setenários da ira divina, o Armagedao etc. Isto indica que importantes aspectos do conceito tradicional da “grande tribulação” advém mais de nossa escatologia sistematizada que do texto bíblico.

Ainda que 7:14 poderia ser o único texto do Apocalipse que descrevesse o período final de sofrimento escatológico como “a grande tribulação” (com o artigo), é igualmente possível que João esteja referindo-se aqui não a um período especifico do futuro, se não a uma forma especifica de sofrer pela fé. O uso mais comum de tlipsis no NT, com raras exceções, se refere as aflições dos cristãos (na história, At 14:22) e, sobretudo, as aflições de Cristo. Paulo fala que suas próprios sofrimentos e aflições vão completando o que falta das tribulações de Cristo (Col 1:24), sem nenhuma referência a eventos futuros.

Ainda que esta passagem da por estabelecido que todos os redimidos tenham passado por “a grande prova”, não implica necessariamente que todos tenham sido mártires, nem tão pouco que somente mártires estarão com esta grande multidão. Já vimos que a multidão inumerável (7:9) representa todo o povo de Deus. Mas todo crente fiel esta exposto a possibilidade real de sofrimento (Jn 16:33; Mt16:24); “É necessário que passemos por muitas tribulações para entrarmos no Reino de Deus” (At 14:22; Nada de um evangelho fácil, de graça barata, para São Lucas!) Porque João vislumbra tempos de severíssima perseguição e escreve para animar valentia a candidatos ao martírio, aqui (como em 20:4-6) ele dá especial ênfase aos mártires, mas sem excluir os demais fieis (cf. Mt 24:29; Mr 13:24).

Nas duas ultimas linhas da primeira estrofe, o ancião explica como a multidão chegou a vestir vestidos brancos: “e lavaram suas vestes, e as alvejaram no sangue do Cordeiro” (7:14b). Já vimos que a roupa limpa (ou suja 3:4; cf. Is 64:6) é um tema frequente no Apocalipse (3:4-5,18; 22:14; cf. 6:11; 19:14). Em geral significam um caráter puro (Ap 3:4-5; 1 Co 6:11; 19:8,14), mas também que pertencem a esfera celestial (Ap 4:4; 6:11). Ademais, neste contexto cultural, as roupas brancas também podem ser entendidas como vestiduras sacerdotais (cf. 1:5; 5:10; ver 7:9).

Bauckham propõem como chave para 7:11 a sua relação com 12:11, (e menos com 1:5 ou 5:9). Nenhuma outra passagem mostra mais profundamente o sentido teológico do martírio cristão e sua estreita identificação com o sacrifício de Cristo. Este hino (12:10-12), em meio da luta contra o dragão, celebra a tríplice vitória de Cristo. O triunfo celestial de Miguel contra o dragão e suas hostes (12:7-9) se atribui a Deus (12:10, ampliando 7:12) e ao sangue do Cordeiro (12:11; 7:14). Então, abruptamente, e com pouco respeito a sintaxe, o hino muda para a terceira pessoa plural, para introduzir uns atores que não pareciam ter algo a ver coma derrota do dragão por Miguel: “eles (os mártires cristãos) o venceram pelo sangue do Cordeiro…diante da morte, não amaram a própria vida” (12:11).

Quando os cristãos fieis, como membros orgânicos do corpo de Cristo, completam “no seu corpo que resta das aflições de Cristo” (ou tribulações, Col 1:24), eles se tornam participantes reais da própria morte dele; literalmente, “morrem com Cristo”. Ainda que para nossa salvação o sacrifício de Cristo foi completo (e neste sentido não lhe faltam sofrimentos), é como se aqueles que tomam a sua cruz para “seguir o Cordeiro por onde for”, renovam a morte do próprio Jesus, a vivem novamente em seus próprios corpos, e atualizam a eficácia do testemunho (marturia) dele. Mais do que somente a morte física deles, foi por seu sofrimento até o fim (Ap 2:13; 12:17) que embranqueceram suas túnicas. Mas o valor de seu testemunho se deriva do testemunho do Cordeiro (12:11).

Isto não deve ser mal-entendido como se nossa salvação fosse pelas obras, em sentido pelagiano, mas também não como graça barata. Quem se alista como seguidor de Jesus Cristo, compromete sua vida inteira. “Quando Cristo nos chama, nos chama a morrer” (Bonhoeffer). A fé em sentido bíblico é muito mais que mera profissão verbal; é entrega total, até as últimas consequências.

Em seu livro El Llamado Ineludible, Cap 7 (“O cristão testemunha-mártir”, 75-83), Kenneth Strachan faz comentários profundamente desafiantes sobre a relação essencial entre martírio e missão. Citando o exemplo de Dietrich Bonhoeffer, Stachan escreve: “Jesus Cristo chama seus discípulos a este tipo de testemunho. Os tempos exigem esta classe de testemunho… O mundo do século vinte (e um) necessita desesperadamente o cristão do primeiro século, o testemunha-mártir que, em última análise, é o único tipo de testemunho que pode representar verdadeiramente os Servo Sofredor de Deus… Por que o chamado a testemunhar é um chamado para aceitar a morte.”

A segunda estrofe da resposta do ancião (7:15) descreve a relação dos fieis vitoriosos com Deus.  Eles estão diante da presença do Senhor rendendo-lhe um culto perpetuo, e estão cobertos por seu tabernáculo. Já lavados e santificados podem receber a revelação e o pacto de Deus (Ex 19:10,14: 24:8); lavados, como os antigos sacerdotes de Israel (Ex 19:4; 30:18-21; 40:12,30-32; Lv 8:6) já podem estar na presença de Deus e celebra-la.

O privilegio dos redimidos é incalculavelmente grande. Ninguém podia suspeitar que ao majestoso cenário celestial do Apoc 4-5 veriam incorporar-se uma imensa multidão de crentes humanos. Igual a outra multidão (os milhares e milhões de anjos 5:11; 7:11; 8:2), estes também estão de pé diante de Deus e o adoram incessantemente (7:15). E mais: rendem culto a Deus “em seu templo”. O naus aqui significa o interior do templo (cf. 11:1-2,19), diferentemente do hieron que se referia aos recintos inteiros do templo (cf. 11:1 átrios externos). O privilegio de entrar no nous se limitava estritamente aos sacerdotes (1 Cr 9:33).

Quão revolucionário então é o quadro de Apocalipse 7. Esta multidão multinacional e pluricultural (7:9), de uma igreja majoritariamente gentil, salta todas as barreiras e entra diretamente a plena presença de Deus para “servirem de dia e de noite no seu santuário.” Não permanece nenhuma segregação racista nem discriminação machista, nem dicotomia entre clero e leigo. Igual aos quatro seres viventes, os vinte e quatro anciãos, e os milhões de anjos, todos os redimidos estão ante a mesma presença de Deus no lugar santíssimo (cf.11:19).

A última sentença da segunda estrofe oferece uma nova promessa: “e aquele que esta sentado no trono estendera sobre eles o seu tabernáculo (7:15). Esta nova promessa se vincula com todo o motivo exodiano que percorre esta passagem (inclusive a festa das cabanas) e também com a menção anterior ao nous. Originalmente o santuário era um tabernáculo, e em Apoc 15:5 o templo se descreve como o “tabernáculo da aliança”.

Que Deus “tabernacularia” com seu povo era um elemento do pacto de Yaveh com Israel (Lv 26:11; Sal 68:16) e uma promessa repetida muitas vezes no AT (Ez 37:27; Zac 2:10-13; cf. Sof 3:17). Chama a atenção que em muitos destes textos, como em Ap 7:14-16, esta presença divina segue a purificação do povo (Is 4:2-6; Ez 43:7; a festa das cabanas foi precedida pelo dia de expiação). Como em algumas outras passagens, aqui Deus põem sua tenda não no meio do povo, se não sobre ele (7:15), como abrigo ou proteção (Is 4:5-6).

O verbo skenoo tinha uma fascinação especial para os judeu-cristãos devido a seu som mui similar a palavra “Chekina”, a “nuvem de gloria” que manifestava a presença divina. Essa correlação, na base da assonância das duas palavras y a relação do tabernáculo com o deserto, faz o nexo entre o conceito de tenda, de santuário e de gloria (doxa 7:12).

A terceira estrofe da resposta do ancião (7:16-17) é um formoso florilégio de promessas do AT que revela a extraordinária destreza de João em tecer motivos tradicionais numa visão criativa e nova. O mosaico começa com uma clara alusão a Isaias 49:10 e termina com Is 25:8. Ambos originalmente do contexto do exilio e o retorno da Babilônia.

A promessa de que “nunca mais terão sede” (7:16a; Is 49:10) era importante para os exilados em seu retorno da Babilônia. Para as circunstancias duras e perigosas da peregrinação, Deus promete uma abundante provisão de agua e alimento (Is 41:17-20; 43:19-20; 55:1). De fato, estas passagens vão bem mais além do retorno de exilados para começar a vislumbrar uma criação totalmente nova (Is 43:18-20; 65:17-19) que será de abundancia para todos. Podemos entender que a releitura escatológica em Apocalipse 7:16 vai muito além do seu sentido literal, sinalizando a satisfação perfeita dos anelos mais profundos do coração redimido, sua fome e sede de justiça e do reino, seu anelo por santidade e plena realização humana em Cristo (Jo 4:14; 6:35; 7:37).

Também a promessa de que “não os afligira o sol, nem qualquer calor abrasador” (7:16) correspondia a um risco muito real para os exilados durante a longa marcha de regresso. O sol tropical e o vento abrasador do oriente (o sirocco), ameaçavam a própria vida dos peregrinos. Já que estes capítulos de Isaias interpretam o retorno dos exilados como um novo êxodo, estas alusões reforçam indiretamente a referência já sinalizada a festa das cabanas.

A resposta do ancião termina em um tom profundamente pastoral: “pois o Cordeiro que está no centro do trono será o seu pastor; ele os guiará as fontes de agua viva. E Deus enxugara de seus olhos toda a lagrima” (7:17). Junto com o verso anterior, a passagem recolhe em poucas frases toda a dimensão pessoal e intima da esperança judeu-cristã. O texto sublinha que o Cordeiro-feito-pastor nos cuidara a partir do trono do universo. E isto se sinaliza por um paralelo com Deus Pai; “aquele que está assentado no trono estendera sobre eles o seu tabernáculo” (7:15) e “o Cordeiro que esta no centro do trono será o seu pastor” (7:17). Desde o puro centro do governo do universo, aquele que disse que “Me foi dada toda a autoridade nos céus e na terra” (Mt 28:18), cuida e cuidara o seu povo.

Um aspecto importante da esperança messiânica era a promessa de um pastor como Davi. Segundo Ez 34 os governantes de Israel haviam sido pastores maus, cruéis e injustos (34:1-10), por isto mesmo o próprio Deus se tornaria o pastor de seu povo (34: 11-22). Despois Deus fara voltar um pastor como Davi e o colocara como único e fiel pastor e governante (34:23-24). Esta passagem de Ezequiel 34 parece haver inspirado o discurso de Jesus sobre o bom pastor (Jo 10) como também este texto em Apocalipse 7:17.  Como sinala Comblin, o Apocalipse combina a figura do pastor de Ezequiel com a do Servo Sofredor de Isaias. Cristo é o bom pastor que da sua vida pelas ovelhas e o Cordeiro que as cuida ternamente.

A seguinte frase especifica duas funções especiais do pastor: guiar as ovelhas e alimenta-las. Originalmente a frase “aguas vivas” significava agua corrente, ou mesmo, agua pura que saltava de uma fonte, em contraste com agua de cisterna ou mesmo estancada (Gen 25:19; Lv 4:5); e aguas perenes de fontes que não se secavam no verão oriental (cf. Sal 1:3; 23:2). Jer 2:13 (cf. 17:13), que faz o contraste entre “cisternas” (rachadas) e Deus como “fonte de agua viva”. Em outras passagens “fonte de agua viva” ou somente “agua viva” se refere a Deus, ao Espirito, a sabedoria ou a Tora.

Nos livros proféticos a imagem de agua viva toma dimensões futuras, escatológicas (Is 58:11, semelhante a Ap 7:17; Is 33:21; 41:17-18; 43:19-20; 44:3; 48:21). Ez 47:1-12 descreve um rio que procede da entrada do templo, que torna a aguas do Mediterrâneo doces, e “onde o rio fluir tudo vivera” (47:9). Mas não são somente uma realidade futura. Jesus falou da agua da vida (Jo 4:10-15; 7:37-39) como símbolo da salvação (Jo 4:10-11,14) e do Espirito Santo (Jo 7:19). Segundo a interpretação mais comum de Jo 7:38, pela plenitude do Espirito dos próprios crentes brotarão rios de agua viva. Neste caso, a Escritura aludida em Jo 7:38 poderia ser Is 58:11: “O Senhor te guiara sempre… Voce sera como um jardim bem reagdo, como uma fonte cujas aguas nunca faltam.”

Todo este hino termina com uma nota terna e maternal: “E Deus enxugara dos seus olhos toda a lagrima” (7:17c). Novamente o sujeito ativo é Deus, como em 7:15. Aqui é natural pensar na figura da mãe, pois ela principalmente (ainda que não exclusivamente) limpa as lagrimas de seu filho ou filha (cf. Is 49:15). Salmo 84:6 (“ao passarem pelo vale de lagrimas, fazem dele um lugar de fontes”) sugere um possível jogo de palavras com a frase anterior: em vez de lagrimas (aguas de tristeza), haverá mananciais de salvação e de vida.

O céu será uma festa. É evidente que no transfundo de Apoc 7:9-17 esta a grande festa das cabanas. Era uma festa tanto santa como alegre, mostrando-nos que santidade e seriedade não são sinônimos. Antes santidade e alegria são gêmeas. A consigna era: “Alegrem-se perante o Senhor… e sua alegria será completa” (Dt16:11,14-15; cf. 12:7,12, 18; Lv 23:40; Ne 8:12). A festa das cabanas era uma semana inteira de alegria transbordante, por isto mesmo, muito idônea para a “plenitude de alegria” que a presença do Senhor traz (Sal 16:11). Para vislumbrar um pouco a felicidade eterna, recordemos as festas mais alegres de nossos povos!

Alguns aspectos da alegria especial desta festa merecem destaque. Junto com a experiência de morar em cabanas (chocas) durante uma semana, a procissão diária da agua, ambas já descritas, era muito popular o rito de iluminação, um verdadeiro festival de luz. Cada noite da festa se acendiam quatro castiçais enormes no átrio das mulheres. As mechas, formadas com usadas vestes sacerdotais, imersas em azeite, quando acesas, produziam uma iluminação tão intensa que os pátios em toda a cidade refletiam esta luz que emanava do templo.

O povo se congregava no átrio das mulheres – para bailar toda a noite. Acompanhados por uma orquestra levita de flautas, alaúdes e címbalos, todos cantavam e dançavam sete dias seguidos. Ate o amanhecer. (Precursor do carnaval brasileiro? Nota do tradutor.) Belas donzelas graciosas buscavam cativar os rapazes, e varões piedosos executavam suas danças de tochas. Tudo era alegria, reinando a confraternização. Israel dava uma lição ao mundo do que é uma festa. Assim também será a vida eterna.

A festa das cabanas nos chama a um estilo de vida mais simples e solidário. Para melhor captar a festa das cabanas, imaginemos que se realizara hoje entre nós, e todas as famílias passassem a viver em chocas por sete dias nos pátios de suas casas. Imagine-se São Paulo: os bancos e as lojas fechadas, os shoppings abandonados, as propinas casas (grandes ou pequenas) desocupadas, com todo mundo indo ao pátio para uma semana de camping ao ar livre, cozinhando a lenha. Nos custaria acostumar-nos; provavelmente muitos teriam um ataque cardíaco ou uma crise de nervos.

Para muitas pessoas, sua casa é o sonho de suas vidas, e a deusa de sua devoção. Quanto bem nos faria passar uma semana anualmente no pátio. Como o dia de descanso significava (e significa) libertação das demandas do trabalho, esta festa significa uma libertação do domínio da casa e dos bens materiais. Nos recorda que nossas casas não são mais do que cabanas em nossa caminhada “a nossa habitação celestial” (1 Co 5:2). Se aqui somos peregrinos, devemos desprender-nos de nossos bens, desmitizar a idolatria materialista que permeia nossa cultura, compartilhar alegremente com os que tem menos e fazer de nossa vida um projeto de mordomia sacrificial e alegre.

Esta festa nos recorda que uma casa não somente é bonita por ser luxuosa, nem que é feia por ser humilde. Zorillo se atreve a falar da “magnificência das cabanas”, porque nelas Deus morava com seu povo e sobre ela pairava a chequina divina. Em quantas mansões Deus esta ausente, e ausente tudo o que embeleza a vida, enquanto numa cabana humilde pode resplandecer a gloria divina.

Nesta festa todos eram iguais por uma semana. O rico não podia dizer nesta semana, “minha cabana é melhor do que a tua”: e nenhum pobre teria de sentir vergonha de sua cabana. O ideal divino, “que haja igualdade” (2 Co 8:13-14; At 2:44-45: 4:32-34), se cumpre pelo menos por uma semana ao ano. E em isto, se antecipa a Nova Jerusalém, cujas riquezas são de todos igualmente.

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 6 – O Comentário do Apocalipse de Juan Stam

CAPÍTULO 6

III. SEGUNDA PARTE: VISÕES DA HISTÓRIA (5:1-16:21)

Nos capítulos 1-5 João contemplou mui intensamente o Senhor como Filho do Homem (cap. 1) que fala a suas igrejas com autoridade (caps 2-3), e como Aquele que está assentado no trono (o Criador, cap 4; e o Cordeiro cap 5). Somente agora os que viram o Senhor estarão devidamente preparados para olhar, desde a perspectiva de Deus, o mundo, a história e todos os seus conflitos.

A estrutura básica de toda esta parte central do Apocalipse é muito coerente e clara. Se compõem de três elementos que se devem distinguir ao ir avançando a leitura do texto:

  1. Três setenários constituem a coluna vertebral de toda a passagem: sete selos (6:1-8:5), sete trombetas (8:6-11:19), e sete tacas da ira (16:1-21).
  2. Depois da sétima trombeta começa um longo relato, em várias passagens separadas, que poderia chamar-se de o drama do dragão (12:1-13:18; 17:1-18; 19:19-21, 20:1-10).
  3. Relatos intercalados e visões independentes se insertam parenteticamente no desenvolvimento do texto, especialmente entre os sextos e sétimos elementos dos setenários.

E muito provável que a extensão deste texto (6:1-19:21) se deva em parte pelo desejo de João de reinterpretar cristologicamente uma grande quantidade de elementos apocalípticos que já existiam e circulavam entre judeus e cristãos.

A. Os sete selos (6:1-8:5)

A técnica literária de desatar processos históricos por meio da abertura de selos de um rolo escrito não aparece nem no AT, nem na literatura apocalíptica. Mas, sem dúvida, a técnica é eficaz para comunicar uma mensagem profética com efeitos dramáticos impressionantes.

Os sete selos correspondem mui de perto com os “princípios das dores” que Jesus anunciou em seu discurso apocalíptico (Mt 24:8; Mc 13:8; Lc 21:9), com as adaptações que seriam necessárias depois de se cumprir a destruição de Jerusalém e do templo no ano 70 da era crista.

  1. Falsos profetas (Mt 24:4s, 11-12 cf. 23-26; Mr 13:5; Lc 21:8). Esta advertência parece referir-se aos agitadores pseudo-messianicos que provocaram a guerra judia do ano 70, (Cf. Josefo)
  2. Guerra e rumores de guerra (Mt 24:6; Mr !3:7; Lc 21:19; Ap 6:4)
  3. Fome (Mt 24:7; Mr !3:8; Lc 21:11; Ap 6:6)
  4. Terremotos (Mt 24:7; Mr 13:8; Lc 21:11: Ap 6:12)
  5. Pestilências e epidemias (Lc 21:11; Ap 6:8)
  6. Terror e grandes sinais nos céus (Lc 21:11, o sol e a lua (Ap 6:12-14)
  7. Perseguição (Mt 24:9-10, cf. 10:17-22; Mc 13:9; Lc 21: 12-15; Ap 6:9-11)
  8. Pregação do evangelho (Mt 24:14; Mr 13:10) para testemunho (Mt 24 :14; Mr 13:9; Lc 21:13) e então “vira o fim” (cf. Ap 6:2; 14: 6))
  9. Abominação da desolação (Mt 24:15; Mr 13:14); Cf. o culto do imperador no Apoc.

Na exposição veremos os paralelos entre o discurso apocalíptico de Jesus e Ap 6:1-8:4).  Parece que João queria oferecer, em forma simbólica e dramática, uma releitura do discurso de Jesus, adaptada para as realidades do fim do primeiro século.

  1. Os quatro ginetes (6:1-8)

Devemos notar que os quatro ginetes aparecem em Zac 1 e 6, mas com um sentido muito distinto. Com efeito, aqui João descreve o processo histórico como uma furiosa carreira de cavalos que galopam através do tempo. Isto se pode observar quando o Cordeiro abre os selos (guerra, fome, pestilências, perseguições, terremotos) em um evidente paralelismo com os acontecimentos anunciados por Jesus em seu sermão apocalítico. Com efeito, os eventos que Jesus descreveu em termos mais literais, João os apresenta através do simbolismo de uma carreira de cavalos.

Depois das visões sublimemente elevadas dos caps 1-5, a cena da saída dos cavalos deve ter sido uma surpresa impressionante para os fiéis da Ásia Menor. Tudo indica que o ciclo dos sete selos constitui um nexo direto entre os tempos dos leitores originais e os tempos futuros da história. Os quatro ginetes simbolizam forças e realidades históricas facilmente reconhecidas.

O primeiro selo: O cavalo branco (6:1-2). Quando tratamos de determinar a que sinaliza este símbolo, a tarefa se torna muito difícil. É praticamente impossível assegurar exegeticamente a que se refere o cavalo branco. Daí uma quantidade de interpretações contraditórias, umas frívolas, outras serias, deste cavalo. Me parece que a interpretação com o maior número de razoes a favor, e o menor de objeções, é a de Ladd e de Cullman. Propomos entender este ginete como a proclamação universal do evangelho, uma das colocações de Jesus no sermão das oliveiras. Isto nos levaria a entender os três últimos cavalos como aliados, forças de morte, em competição com o cavalo branco da vida e da salvação.

Se entendemos o cavalo branco como o evangelho do reino, podemos supor uma simetria na mente de João. Depois do primeiro selo seguem seis selos com severos castigos. O último selo consiste precisamente das sete trombetas que respondem as orações dos santos. As seis primeiras trombetas, como nos selos, são pragas horrendas. Mas a sétima trombeta anuncia a chegada do reino de Deus. (11:15-19). Isto constituiria uma inclusão literária e teológica. Todas as catástrofes havidas e por haver caem inseridas entre o cavalo branco do anuncio do evangelho e a sétima trombeta da vitória final do reino de Deus. Com isto Cristo seria tanto o Alfa como o Ômega, tendo como ponto central as orações dos fiéis.

O segundo selo: O cabalo vermelho (6:3-4). Não é muito difícil de identificar o cavalo vermelho, por suas funções: “tirar a paz da terra e fazer que os homens se matassem (massacrassem) uns aos outros” (4). Representa o militarismo e a guerra. Com também o patriotismo exacerbado, o ódio, o fanatismo, a idolatria do poder, a tecnologia da morte, a indústria e o comercio armamentistas, a religião sem o caráter de Deus. Todos estes montam o cavalo vermelho.

Este cavalo se tornou mais feroz no século XX, com o bombardeio aéreo de populações civis na IGM, mas também de Bagdá, ultimamente. Sem falar nas bombas atômicas jogadas sobre Hiroshima e Nagasaki, com consequências funestas até o dia de hoje.

O terceiro selo: O cavalo preto (6:5-6). Este cavalo e seu ginete são obviamente símbolos do comercio. Vender grãos básicos por peso era indicio de carestia e escassez. Grãos básicos se vendiam por vulto. Por ouro lado, o protecionismo do vinho e do azeite indicavam os interesses do império. O protecionismo do império. A cor preta deste cavalo ainda hoje conduz a expressões como o “mercado negro. ” Comprar grãos básicos por peso na Bíblia era indicação do juízo e do castigo de Deus (Ez 4:16, Lv 26:26).

Sabemos que um quilo de trigo era a ração diária de um trabalhador braçal. Assim, um denario diário de um jornaleiro, salário mínimo da época, não dava para o sustento da família. (João sabia algo da exploração do trabalhador do seu tempo.) Há informações sobre o preço muito menor do trigo em outras regiões do império. Mas aqui temos um ponto fundamental: especular com necessidades humanas básicas, é um pecado. Os que produzem e os que distribuem bens merecem uma justa recompensa. Mas quando uma economia está estruturada a favor dos interesses das elites econômicas, e castiga sistematicamente os que menos tem, está a serviço do cavalo preto. Ao cavalo preto interessam somente os lucros dos ricos, e nunca as necessidades dos pobres. (Quem vê a Deus fica de olho na economia? Uma economia anti-vida serve o diabo.)

“O que parecia uma voz” (6) não é a voz do Cordeiro, nem dos seres viventes que representam a vida. É a voz despersonalizada do mercado? Mais uma vez João se mete em assuntos econômicos na última frase: “e não danifique o azeite e o vinho. ” Suetonio nos dá uma chave para entender este texto. No ano 92 o imperador Domiciano, vendo a abundância de vinho e a escassez de trigo em Roma, e possivelmente com a intenção de proteger o preço do vinho em benefício dos produtores italianos, emitiu um decreto que ordenava não mais plantar vinhedos na Itália, e destruir cada ano a metade dos vinhedos das províncias. João sabia que o azeite também era produto de agro exportação. (Quem vê o Cordeiro se torna critico com respeito a economia, especialmente quando o protecionismo beneficia um grupo privilegiado?)

O quarto selo: O cavalo amarelo (6:7-8). A cor amarela descrevia a cor de um moribundo prestes a morrer. Este cavalo se identifica por seu nome e o nome de seu acompanhante: Morte e Hades. Muitas vezes a morte e o Hades são personificados nas Escrituras e muitas vezes aparecem juntos.

Aqui Morte e Hades se referem a todo sistema organizado contra a vida. É o “império ou poder da morte” de que fala Heb 2;14 ou o “domínio da morte” de Ro 6;9 (cf. Ro 5:14,17,21). Por Morte se entende toda a forca diabólica oposta ao próprio Deus, e por tanto anti-vida por excelência.

Esta parelha fatídica recebe a autoridade para matar uma quarta parte da humanidade. Também são identificados os instrumentos de sua ação mortífera: mata com espada, fome, peste e animais mortíferos. Os instrumentos correspondem exatamente com o segundo, terceiro e quarto cavalo. Não se menciona o primeiro cavalo, o que nos permite concluir que o vitorioso poder do cavalo branco (6:2), diferentemente dos outros três, não está sob a autoridade de quarto cavalo. (Não restam dúvidas que Ez 5,12,17 são o transfundo desta passagem).

No Apoc esta parelha fatídica não tem futuro. Ela desaparece totalmente no antepenúltimo capitulo, onde o profeta depois do Juízo Final (20:12-14), nos informa que a Morte e o Hades entregaram os mortos que estavam com eles… e a Morte e o Hades foram lançados no lago de fogo (20:14). Realmente todo o livro de Apoc é uma longa história da vitória de Jesus Cristo, autor da vida, sobre estes dois inimigos, a Morte e o Hades.

  1. O quinto selo: Oração dos mártires sob o altar celestial (6:9-11).

O quinto selo introduz outro dos temas do discurso escatológico de Jesus: a perseguição e o martírio. (Mr 13:9-13; cf. Mt 23:29-31). Das forças da morte (6:3-8), João passa as vítimas desta violência “por causa da Palavra de Deus e do testemunho (martírio) que deram. ” Agora eles vivem como vencedores na presença do Senhor. (Mas não cantam somente louvações. Também reclamam por justiça).

Segundo a tradição judia, que parte do relato de Caim e Abel, todo o sangue injustamente derramado clama perante Deus desde a terra (Gn 4:10). Segundo fontes rabínicas a terra se recusa a absorver o sague dos assassinados, e reclama por justiça. Jesus, em sua mordaz denuncia dos fariseus e escribas (Mt 23; Lc 11:37-54), apela para o mesmo argumento (Mt 23:25; cf. Lc 11:50-51).

Este transfundo confirma que a oração dos mártires (como também a oração dos santos segundo 8:2-4) era de fato uma reclamação por justiça. Especificamente os mártires protestam pela demora da justiça que haveria de vingar o seu sangue. (Estas orações justiceiras tinham longa tradição no judaísmo).

A reclamação dos mártires (6:10).

Os mártires oram a Deus como “Soberano, santo e veras. ” A palavra grega hodespotes também tinha um sentido político de longa data, pois era usada acerca dos imperadores romanos, tanto para indicar seu poder absoluto, como sua divindade. Para os cristãos somente Deus é soberano. Josefo relata que Eleazar e seus companheiros morreram por negar chamar o imperador de soberano.

O grito “Até quando?” é clássico nos profetas (Zac 1:12), Salmos 79:5,10 e na literatura apocalíptica. Aqui expressa a impaciência tanto dos mártires glorificados, como dos fieis na terra. Este clamor leva um implícito problema de teodiceia histórica: sendo Deus soberano, justo e veraz, como podemos explicar a demora da sua justiça?

A resposta a reclamação dos mártires foi tripla (6:11): (1) os mártires se lhes deram roupas brancas, indicando que desde agora os mártires entram em sua vitória, na comunhão com Deus, e na celebração festiva do reino de Deus. Como também, suas vestes brancas garantiam a vitória final e definitiva da causa pela qual entregaram suas vidas e de sua eterna participação na gloria como outros mártires (testemunhas) da Palavra de Deus. (2) Se lhes disse que esperassem, e (3) até se completar o número dos mártires conservos e irmãos, que seriam ser mortos como eles.

O descanso (Ap 14:13) que se lhes oferece implica tanto uma teodiceia como uma resposta ao espinhoso problema da demora do Fim. Deus não é indiferente nem a injustiça nem ao sofrimento dos justos. Mais bem, posterga sua ação justiceira conforme um plano eterno que é parte da própria história da salvação. Na resposta fica claro que o sofrimento terá fim. Os inimigos do reino, ao derramarem mais sangue, simplesmente apressuram seu próprio juízo. As orações dos fiéis, especialmente dos mártires, podem adiantar o processo histórico (cf. 2 Pe 3:12).

As Escrituras proíbem a vingança e a retaliação. Mas ainda que os mártires agora descansem, segue sendo implacavelmente necessário que seu sangue seja vingado, para demonstrar que no fim o mal não pode vencer. Os santos do céu se queixam contra o próprio Deus. Isto não é um pecado; mais bem, as vezes uma falsa ou equivocada paciência, ou um conformismo passivo, podem sê-lo. Para que hajam transformações na terra, se necessita de uma apaixonada, teimosa e rebelde impaciência. Confundir o conformismo com santidade é colocar-se as ordens do pecado e da injustiça.

  1. O sexto selo: O terremoto escatológico: Se sacodem os fundamentos (6:1217)

a. As catástrofes cósmicas (6:12-14)

O sexto selo remete a outro dos fenômenos do discurso do Monte das Oliveiras: um terremoto (Mr 13:8; Mt 27:7; Lc 21:11). João faz três modificações ao tema: (1) Em vez de muitos terremotos locais nos Sinóticos, João apresenta somente um terremoto gigantesco com repercussões cósmicas; (2) João também posterga o terremoto do início (Sinóticos) para bem mais para o fim do trecho; (3) João vincula o terremoto e os fenômenos celestiais com o “grande dia da ira” de Deus e do Cordeiro (6:17).

Algumas pautas para interpretar os simbolismos cosmológicos: Primeiro é preciso notar que idênticas descrições que tanto nos impressionam em Ap 6:12-14, em geral ocorrem com um sentido totalmente simbólico em passagens poéticas, que nada tem a ver com o fim do mundo. A conhecida passagem do Sal 46:1-3 para expressar a fidelidade de Deus é muito conhecida. (cf. Sal 60:1-2; 97:1-7).

Obviamente estas palavras são uma hipérbole poética; ainda que caísse o céu, Deus será fiel, e confiaremos nele (46:1,4-6). Esta linguagem poética se emprega frequentemente para descrever eventos históricos passados, sem que nada do descrito tivesse ocorrido literalmente, nem que implicava o fim do mundo. O uso mais típico se refere ao êxodo e ao Sinai (Ex 19:18; Sal 68:7-8; Hab 3:3-12). Debora obviamente vê no triunfo sobre Sisera o mesmo poder divino manifestado no êxodo (Jui 5:4-5). Davi descreve sua libertação de Saul em termos quase idênticos (2 Sm 22:7-16; Sal 18:6-15).

Todas estas passagens nos revelam o significado deste conjunto simbólico: são uma maneira de sinalizar a manifestação e a intervenção de Deus. (Não devem ser tomadas literalmente.) Não surpreende que para desenhar a intervenção definitiva do Senhor, os autores bíblicos utilizaram os mesmos símbolos que sempre haviam expressado a presença luminosa de Deus e suas façanhas na história.

Também chama atenção que nenhum autor do NT, nem tão pouco Jesus, intenta explicar estas imagens escatológicas. (É só continuar lendo o Apocalipse para ver o que mais vai passar com o sol, a lua, as estrelas, o céu, as montanhas e as ilhas, que continuam presentes.) Os terremotos são a linguagem que anunciam o juízo de Deus.

Em realidade o terremoto (6:12) é fundamental na estrutura do livro (carta) do Apocalipse. Com efeito, para João de Patmos o terremoto é o símbolo básico e definitivo do juízo divino. Cada setenário termina com um seimos megas. Aqui o terremoto é o último juízo entre os selos; o sétimo selo igualmente termina com um terremoto (8:5). A sétima trombeta vai rodeada de dois terremotos: um, que conclui o relato das duas testemunhas (11:13), e outro, depois da sétima trombeta (11:19). A sétima taca da ira de Deus, o clímax dramático do longo processo de juízos nos três setenários, consiste precisamente num terremoto, elaborado em muitos detalhes (16:17-21). A mensagem é sempre o juízo de Deus.

O sol escurece (6:12c). Antes de terminar sua descrição do terremoto (6:14b), João insere vários fenômenos celestiais. No pensamento hebreu a luz se associava com a presença e a benção de Deus, e a escuridão com a perda das mesmas. A negação da luz se entendia como um sinal do juízo divino. Suas notáveis variedades de descrições são uma advertência que não podemos tomar cada detalhe literalmente. Em cada caso, o juízo divino consiste em privar a humanidade de uma das bênçãos da boa criação. Na nova criação não haverá falta nem de sol, nem de lua. A gloria de Deus iluminara a nova Jerusalém (21:23).

A lua tornou-se vermelha como sangue (6:12c), o que parece basear-se na conhecida ilusão ótica, por circunstancias especiais de refração de luz. Em Joel (2:30-31) a lua ensanguentada podia simbolizar acontecimentos violentos na terra. A passagem tem claros ecos do êxodo (Ex 10:1-20; 10:21-29; 7;20-25; cf.12;7,29), igualmente sinalizando o juízo de Deus. Como as trevas cobriram o Egito, agora cobrirão a lua; como o Nilo se converteu em sangue, agora aquela praga toma dimensões cósmicas ao converter a própria lua em sangue. Mas igual que no êxodo, estes sinais de juízo serão ao mesmo tempo evidencias da vinda de Deus para salvar o seu povo (Jl 2:32).

As estrelas caíram na terra como figos verdes (6:13). Para os hebreus, a estabilidade dos céus garantia a fidelidade de Deus e do universo, para poder viver em paz e em segurança. A queda das estrelas implicava uma ameaça, a interrupção da boa ordem da criação. Sinal de juízo, outra vez.

O céu foi se recolhendo como se enrola um pergaminho (6;14a)

Mais uma vez é impressionante notar que João se inspirou em uma só passagem do AT (Is 34:4) e na literatura apocalíptica de seu tempo. Igual como Jesus cerrou o rolo na sinagoga e o colocou de lado (Lc 4:17,20), ou se dobra um manto usado antes de muda-lo por outro (Hb 1:11-12), em forma semelhante se descreve o fim do “pergaminho” celestial. Cumpriu sua função; se recolhe e se põem de lado. (Haverá um novo céu e uma nova terra. O mundo presente desaparece, e chega uma nova criação.)

Todas as montanhas e ilhas são removidas (6:14b). Para os hebreus não havia nada mais forte, estável e confiável do que as montanhas. Pareciam como sendo invulneráveis, a prova de toda a destruição (Sal 46:2-4, Is 54:10). Por isto sua anunciada destruição somente poderia representar o fim do mundo (Cf. 16:20). No desenvolvimento do Apoc, o terremoto que remove montes e ilhas anuncia a chegada de algo muito mais estável, o novo céu e a nova terra (cf. Heb 12:25-28)

b. O Pânico dos poderosos (6:15-17)

Se antes (6:12-14) tremiam o céu e a terra, agora são os poderosos da terra que vão tremer. João faz uma lista de sete grupos que ficaram aterrorizados pelo juízo simbolizado pelos fenômenos cósmicos. (6:15). Estes são os algozes dos mártires que clamavam em 6:10. A lista abarca exaustivamente todos os poderosos da época, junto com seus seguidores (“todos, escravos e livres”).

Em outras passagens bíblicas e extra bíblicas se alude ao juízo especialmente exigente “para os de cima”. Ocupam o primeiro lugar na lista os reis da terra, que concentravam o maior poder na época. Sem dúvida o imperador romano encabeçava este grupo, seguido de reis súditos e governantes hostis ao reinado de Cristo. Os “reis da terra” se mencionam nove vezes no Apóc. (1:15, 6:15, 16:14, 17:2,18, 18:3,9, 19:19, 21:24). Na primeira e na última vez os reis estão sujeitos a Cristo, mas em todas as outras menções intermediarias eles seguem a besta. Mais uma vez, Cristo é o Alfa e o Ômega; o reino da besta é um reino meramente interino. Os poderosos governantes e imperadores desobedientes a Deus, receberão seu juízo merecido.

Seguem na lista o que a NVI traduziu por “príncipes”, mas que seria melhor traduzido por magnatas por seu grande poder econômico. Nos tempos do império romano havia magnatas muito famosos e poderosos. Crasso acumulou uma fortuna quase igual ao ingresso anual do erário imperial. Subsidiou a carreira política de Júlio Cesar. Teve seu próprio exército. Tinha a riqueza tão abundante que podia comprar ou impor as políticas de seu interesse no império mais poderoso de seu tempo.

Aos imperadores e magnatas seguem os generais, ou chefes militares, o estado maior do exército imperial. São os que andam montados no cavalo vermelho (6:3-5), e mobilizam as suas forças para guerrear contra o Cordeiro (13:7; 16:14; 17:14; 19:19; cf. 11:7). Seu invisível comandante maior é o dragão, que mesmo depois de uma prisão de mil anos não pode pensar em outra coisa senão guerra e mais guerra (20:7-9).

Com estas três categorias João descreve o poder máximo: o político, o econômico e o militar. Seguem ricos e poderosos, dois grupos de privilegiados, mas abaixo dos três acima. Este catalogo dos “habitantes da terra” (3:10; 6:10) termina com uma categoria geral que incluía o restante dos mundanos: “todos, escravos e livres” (6:15). A ênfase cai fortemente sobre todos os poderosos e privilegiados que encabeçam a lista, mas os demais que os tem seguido tão pouco escaparão do juízo. Ao contrário do significado corrente, no Apocalipse nem os “habitantes da terra”, nem “todos, escravos e livres” significam toda a humanidade. O capítulo seguinte deixa claro que os “selados” do Senhor não se incluem debaixo desta terminologia (habitantes da terra), se não somente os inimigos do Cordeiro (11:10), que adoram a besta (13:10,11, 14) e se deixam enganar por ela (13:14; cf. 17:2; 20:28). Seus nomes não estão escritos no livro da vida.

A figura de esconder-se em cavernas (6:15), era clássica para representar grande vergonha, medo ou humilhação dos poderosos, quando julgados por Deus (Is 2:10,18-21; cf. Jer 4:29; Os 10:8; Lc 23:30). Não é difícil sentir a forca irônica do quadro dos mais poderosos do mundo buscando esconder-se numa cova, acocorados, tremendo de medo. Todos eles, apesar de seu prestigio e poder, agora são tomados pelo pânico.

Não era nada desconhecido para os judeus ter de esconder-se em covas ou cavernas (Heb 11:38) na fuga de um inimigo. Mas agora os poderosos não estão fugindo de um inimigo invasor, nem tão pouco tentando defender-se de um terremoto, se não buscam esconder-se da terrível presença do Senhor que vinha para julga-los. Os ímpios agora suplicam montanhas e rochas que os escondam da olhada escrutinadora daquele que está sentado no trono e o Cordeiro.

O que está sentado no trono e o Cordeiro, antes adorados (4,5) juntos agora iniciam o juízo. Agora o Soberano olha desde seu trono com toda a severidade do justo juiz e o Cordeiro manifesta a veemência divina ante o pecado impenitente. Na Bíblia a ira de Deus não tem um sentido essencialmente emocional ou psicológico, senão um sentido ético e jurídico. É a resposta de um Deus santo a maldade persistente e impenitente (Bruce).

A realidade da justiça de Deus é fundamental a mensagem do evangelho. Para nossa justificação a santa e justa “ira” de Deus caiu sobre Jesus Cristo, o Cordeiro (Rm 3:25-26). Mas a mesma justiça divina pela qual ele foi para a cruz, é aquela que também deve executar-se naqueles que com rebeldia rechaçam a graça de Deus.

Mesmo em sua ira justiceira, Jesus não deixa de ser o Cordeiro. E o juízo final de todos os seres humanos está nas mesmas mãos que foram cravadas na cruz por nossos pecados. Na cruz descobrimos que a resposta de Deus ao sofrimento (Is 53) e ao pecado (2 Co 5:21) é assumi-los em si mesmo para redimi-los. Aquele que por fim vai julgar os pecadores é o mesmo que aquele que sabe o que é ter sido considerado pecador. Sua ira é a ira do Cordeiro imolado pelos demais; em sua ira a justiça de Deus e a ternura do Cordeiro se dão um abraço.

Em seu imenso desespero, os poderosos proclamam que chegou o grande dia do castigo. Mas de fato não é o fim do mundo, mas somente uma serie longa de visões que caminham até chegar ao fim. A passagem termina com uma pergunta: quem poderá suportar o grande dia do juízo?

Esta pergunta recebe uma resposta dupla. Por um lado, os injustos, que seguem a besta, e cujos nomes não estão no livro da vida, nenhum deles escapara ileso no juízo de Deus. Por outro lado, como veremos no capítulo seguinte, nenhum dos selados pelo Senhor se perderá naquele dia. Todos os fiéis se manterão firmes na prova final.

Missão Impossível: Esconder-se de Deus. O juízo final será a hora da verdade. A falsidade não tem futuro. Todas as máscaras cairão no fim, porque Deus julgara os segredos de todas as pessoas. (Ro 2:16). “ele trará a luz o que está oculto nas trevas, e manifestara as intenções dos corações” (1 Co 4:5). Todos os “mentirosos—o lugar deles será no lago de fogo (Ap 21:8); “todos os que amam a mentira”’ ficarão fora do reino de Deus (Ap 22:15: cf. Heb 4:13). A forte admoestação no final do Apocalipse (21:8,27) não é mero moralismo. O reino de Deus é um espaço de autenticidade, onde não cabem a falsidade, a hipocrisia, a insinceridade, a pretensão.  Onde não há integridade e autenticidade, não está presente o reino de Deus.

(Nota do tradutor: Minha intenção maior é abreviar o texto. Mas animo a todos “não covardes” a lerem o texto todo em seu original em espanhol. Vale a pena. Anexos vão três artigos do Blog de Juan Stam que se relacionam com o capitulo 6.)

 

CAPÍTULO 5 – O Comentário do Apocalipse de Juan Stam

CAPÍTULO 5

  1. A Visão do Cordeiro (5:1-14)

A grande visão do Trono segue no Cap. 5, mas com uma dimensão totalmente nova. O Cap. 4 representa o majestoso e sereno culto celestial ao Criador de todas as coisas, que está sentado no trono. Com o Cap. 5 a visão passa a contemplar o problema da história e do pecado, por meio do símbolo do livro (rolo) selado por sete selos. Aparece então dramaticamente o Cordeiro crucificado e ressurreto que toma o livro das mãos do Ocupante do Trono. Em seguida todo o céu e todo o universo se unem em doxologia ao Cordeiro e ao que está sentado no Trono (5:13).

a) O livro que fez Joao chorar (5:1-5)

Uma segunda faze da visão do Trono começa quando Joao vê na mão direita do Sentado no Trono um livro (rolo). Este livro misterioso, totalmente selado, complica a situação tremendamente. Porque este livro coloca o assunto básico que vai estar presente no resto do Apocalipse: A história tem sentido? Como encontra-lo? Como manter a esperança debaixo de circunstancias aparentemente impossíveis? A resposta que nos dá o Apocalipse é inconfundível: somente o Cordeiro é capaz de desvendar a lógica última do processo histórico. Mais ainda, somente o Cordeiro mesmo pode salvar a própria história, apesar de que ela, a curto prazo, aparenta terminar em tragédia.

A interpretação mais convincente é que este rolo completamente selado contém os acontecimentos futuros que Cristo havia prometido mostrar a Joao (4:1). Desde o início o rolo está em mãos do Ocupante do Trono. Mas Deus mesmo não abre estes selos. Um anjo clama em voz altíssima por alguém que poderia abri-los. Mas não apareceu ninguém no mundo criado que pudesse abri-los. E ante o silencio cósmico, Joao se põem a chorar desconsoladamente. Se o Deus três vezes santo e justo nos julgara, sem a mediação do Cordeiro, o juízo só poderia ser condenatório. Por isto o Pai delegou o juízo ao Filho (Jo 5:22s,27). Agora quem vai julgar a humanidade é o mesmo que morreu por ela. Sem o Cordeiro, teríamos que chorar; com o Cordeiro, podemos cantar.

b) O Cordeiro que venceu (5:5-7)

i) O anuncio do Ancião (5:5)

O cenário tem uma virada quando um dos anciãos dirige a Joao uma mensagem de esperança: há um Messias vencedor, digno de abrir os selos. Sua mensagem consoladora consiste em duas alusões as Escrituras hebraicas (Gn 49:9s; Is 11:1,10) junto com uma proclamação de vitória. Este ancião se torna um evangelista de boas novas. Jesus é descrito como o Leão de Judá e como Raiz (rebento, renovo) de Davi. Claramente o autor identifica Jesus de Nazaré com esse Messias dravídico. (Zac 6:12)

O fato novo é que este Messias já “venceu”, que implica um significado político-histórico. Com o poder de abrir os selos, O Cordeiro recebe a potestade de encaminhar todo o futuro ao reino de Deus. A verdade de nossa salvação pessoal e do perdão dos nossos pecados se fundamente no fato decisivo que Cristo venceu, é o Senhor da história, e trará um reino de amor e justiça. Ä salvação individual está incluída, mas a ênfase principal está na salvação do povo de Deus como uma sociedade que mora na terra, libertada de todos os seus males espirituais, sociais, políticos e físicos. (Ladd)

ii) A visão do Cordeiro (5:6-7)

Escutada a palavra de vitória, Joao volve seu rosto ao Trono, esperando ver um leão. Mas vê algo totalmente distinto: um Cordeiro, imolado, de pe. A palavra Cordeiro não aparece no judaísmo como designação messiânica. Cordeiro é linguagem do Cristianismo primitivo. Daqui para frente Cordeiro será a designação mais frequente, típica e significativa para Jesus no Apoc. E Cordeiro deve ser lido a partir do Êxodo. (Comblin, Ellul) O Cordeiro venceu a partir de sua impotência (1 Cor 1:18-25), sua maior vulnerabilidade e mesmo sua derrota vergonhosa. É como Cordeiro imolado, com o amor que chegou às últimas consequências para redimir-nos, que o Cordeiro é digno de abrir as páginas seladas da história e do futuro.

A oura surpresa de Joao é que o Cordeiro imolado está de pe. Jesus não somente ressuscitou, mas post-mortem foi erguido em dignidade e poder, com sete chifres (poder plenipotenciário) e sete olhos (saber onisciente), indica que o Cordeiro Ressuscitado possui todo o poder e sabe tudo.

Quando Joao observou bem o Cordeiro ocorre outra coisa insólita: o Cordeiro se aproxima do Trono, sem ser chamado, nem ter autorização. (Veja riscos em Ester.) Em seguida recebeu, ou tomou, o livro da mão do Sentado no Trono. E o atrevido Cordeiro, ao invés de receber uma admoestação, é adorado na presença do Sentado no Trono, ocupando com ele o centro do universo. Ao tomar o livro, o Cordeiro é autorizado a executar todos os decretos e juízos ali inscritos. O Cordeiro é revelado como sendo o soberano da história e do futuro.

c) O Cordeiro transforma o pranto em canto (5:8-14)

A reação do Cordeiro atrevido agora traz nova surpresa: os seres viventes e os anciãos, que sem interrupção vinham adorando o Ocupante do Trono, agora, sem demora se ajoelham diante do Cordeiro. Assim inicia um concerto de hinos que seguira crescendo até alcançar uma dimensão cósmica.

I) A adoração dos seres viventes e dos anciãos (5:8-10)

Vendo que o Cordeiro havia tomado o livro, os quatro seres viventes e os vinte e quatro anciãos se unem num coro para adora-lo em voz uníssona. (É interessante notar que a música celestial é sempre coral; não aparecem solistas nos relatos.) Cantam com um melodioso acompanhamento de citaras (harpas ou liras) e a rica fragrância de abundante incenso. É um cenário litúrgico incomparável. (A harpa, considerada o mais doce e nobre dos instrumentos musicais, é pôr excelência o instrumento de música celestial 5:8, 14:2, 15:2) Novas misericórdias demandam um “cântico novo”.

O primeiro gesto da corte celestial é cair de joelhos ante o Cordeiro. Com este gesto os “28” expressam, por um lado, a transcendência do significado do ato que acaba de acontecer: o Cordeiro tomou em suas mãos o destino da história. Por outro lado, ao tributar ao Cordeiro a mesma adoração que haviam brindado ao que Ocupante do Trono, reconhecem que o Cordeiro é digno do mesmo culto que se brinda a Deus.  Uma vez que o livro do Apocalipse insiste incondicionalmente que somente Deus, e ninguém mais, deve ser adorado de joelhos (19:10, 22:8-9), esta adoração é uma confissão da plena deidade do Cordeiro.

As “tacas de ouro cheias de incenso” indicam uma tradição bíblica que associava a oração dos fieis com o incenso (Sal 141:2, Lc 1:10). Esta passagem, juntamente com Apoc 8:1-4, nos assegura que nossas orações de fato chegam aos céus. Nossas orações, qual incenso, são agradáveis a Deus.

Apoc 4-5 nos ensinam que haverá perfume e música no céu. Antes de poder enfrentar as realidades por vezes grotescas da história, era indispensável para Joao ter uma visão da formosura de Deus e do Cordeiro. A visão do Trono e do Cordeiro reafirmam para Joao as bases estéticas do universo. Pecado é feiura. Santidade é beleza. (Deus é belo.)

II) O hino dos seres viventes e dos anciãos (5:9-10)

O coro uníssono dos 28 entoa um “és digno” ao Cordeiro, porque era digno de abrir o livro que tanto preocupava a Joao. Eles afirmam três razoes por esta dignidade:1) ele foi degolado, 2) com seu sangue ele redimiu de todas as nações um povo para Deus, e 3) e fê-los para Deus reis e sacerdotes, que reinarão sobre a terra. O Cordeiro não somente toma as rédeas da história, mas também nos faz colegas seus num governo solidário e participativo da terra.

A soteriologia de Joao corresponde fundamentalmente com o restante do NT. Com o preço de seu sangue o Cordeiro nos libertou de nosso pecado (1:5) e em seu sangue ele embranqueceu (purificou) os nossos vestidos (vidas). (7:14) Por esta obra o Cordeiro não somente é digno de abrir o livro, mas também de receber a mesma adoração que antes se atribuía a Deus.

Em toda esta passagem está presente o Êxodo, não somente através da imagem do cordeiro pascal (Ex 12:13), mas também através do pacto com Israel, chamado a ser uma nação santa e um reino de sacerdotes (Ex 19:4-6). Como no Êxodo também aqui se canta um novo canto. (Ex 15) Agora o Cristo-Cordeiro nos constitui em um novo Israel, o povo de Deus da era messiânica.

No AT a ênfase parece concentra-se no aspecto sacerdotal (representar Deus diante das nações e as nações diante de Deus), enquanto no NT a ênfase cai no aspecto político, porque eles “reinarão sobre a terra” (5:10). É um povo escravo (ao Egito, ao pecado) que é transformado em reis e sacerdotes. É na qualidade de nova humanidade, criada em e por Jesus Cristo, que ostentamos tão alta dignidade e privilegio. Agora somos primícias, sinal e antecipação.

Mas privilegio implica em responsabilidade. A obra redentora de Cristo é universal (“gente de toda tribo, língua, povo e nação”) e implica a missão universal do novo povo de Deus, a igreja. Vale a pena enfatizar que o reino messiânico, futuro, Joao sempre entende como co-governo participativo com todos os fiéis.

De acordo com o Apoc o reino de Deus não procede deste mundo (ek, Jo 14:36), mas vem a esta terra, o que contrasta com a equivocada interpretação escatológica verticalista e ultra-mundana.

III) A adoração da multidão de anjos (5:11)

Como um majestoso responso antífona aparece repentinamente um coro inumerável de anjos que também adoram o Cordeiro. Há um salto quantitativo significativo: de 28 a miríades, que era o maior número que conheciam. No cristianismo primitivo se cria que anjos acompanham nosso culto. Assim, por pequeno, e numericamente insignificativo que seja nosso culto, mesmo não chegando a 28 participantes, perante Deus ele é formoso e majestoso, acompanhado pela corte celestial.

Esta multidão milionária de anjos vai expandir-se ainda mais para incluir “toda a criação.” (5:13) Mas seu eixo central é o trono que aparece primeiro em 4:11. Este trono que Joao havia visto primeiro em 4:2, resulta ser indiscutivelmente o centro e o fulcro do universo inteiro. E o Cordeiro comparte plenamente este lugar central com o “Sentado no Trono.”

Diferentemente da adoração dos quatro seres viventes (representando a vida) e dos 24 anciãos (representando o povo de Deus do antigo e do novo pacto) que tinham uma razão muito especifica para louvar o Cordeiro, por ser “digno de receber o livro, e de abrir os seus selos” (historia) por causa de sua obra salvífica, agora os miríades de anjos irrompem numa explosão de sete (número de perfeição) atribuições ao Cordeiro, estritamente divinas, mas aqui assignadas confiante e reverentemente ao Cordeiro imolado, reconhecido plenamente como Deus. (Veja o desenvolvimento continuo das doxologias dos Caps 4 e 5).

Joao não quer deixar dúvida alguma sobre a divindade do Cordeiro. Como que esgota os recursos linguísticos para elevar a gloria incomparável do Cordeiro, em forma sétupla, perfeita, igualando, ou mesmo sobre passando a gloria de Sentado no Trono. O Cordeiro é plenamente Deus. É sete vezes divino.

Isto surpreende porque quando recordamos que o Apocalipse enfatiza muito que a adoração deve ser atribuída somente a Deus (19:10; 22:9). Mas aqui, em plena presença do Criador Todo-Poderoso, a adoração se enfoca no Cordeiro. Esta adoração não é nem blasfêmia, nem idolatria. Não poderia ficar mais dramaticamente claro que para Joao o Cordeiro é Deus, igual ao Pai em poder e gloria, e digno de receber a mesma adoração.

 

IV) A adoração de toda a criação (5:13)

No verso 13 aparece o ultimo círculo concêntrico que envolve nada menos que todo o universo, toda a criação. Agora todo o mundo criado se apresenta ao redor do Trono e do Cordeiro. Nada do que existe fica fora. Antes não havia nada, nem ninguém, no céu, na terra ou entre os mortos que poderia abrir o livro selado. Agora, perante o Cordeiro, toda a criação (céu, terra, debaixo da terra e no mar) louva o Cordeiro que pode assumir o desafio do anjo forte e tomar a direção da história.

A adoração da criação inteira se dirige conjuntamente ao Sentado no Trono como ao Cordeiro. Ambos recebem as mesmas atribuições de toda a criação e por todo o tempo, “para sempre.” Como é eterno o Criador, é também eterno o Cordeiro e sua obra redentora.

Aqui descobrimos uma verdade de importância extraordinária: o universo inteiro tem uma finalidade doxologica. O fim primordial de tudo o que existe, e não somente da humanidade, é “glorificar a Deus e desfrutá-lo para sempre.” (Catecismo de Westminster). Esta passagem expressa, em linguagem poética e litúrgica, a mesma verdade de Col. 1:20: a morte de Jesus Cristo na cruz reconciliou todo o cosmo, ou universo. O proposito eterno de Deus é de recapitular o universo doxologicamente em Cristo (Ef 1:10), até que ele seja tudo em todos (Col 3:11).

  1. O Amém dos seres viventes (5:14)

Depois do crescente louvor, voltamos um pouco abruptamente ao círculo inicial (4:4-11), isto é, aos quatro seres viventes e os vinte e quatro anciãos. Os quatro viventes respondem com um sonoro Amém, e os vinte e quatro anciãos com a genuflexão e a adoração, uma forma não verbal de dizer Amém. Não é difícil perceber o gênio literário do autor, nem sua magistral construção artística simétrica.

Em contraste com as formulas um tanto frívolas que usamos hoje, o amém não somente confirmava a adoração anterior, como comprometia a própria vida dos adoradores. A palavra amém tem como raiz hebraica firmeza, constância e comprometimento. Se respondia com Amém a um pacto (Jer 11:3-7) ou para confirmar um juramento, ou mesmo maldição (Deut 27:15-26). Só tardiamente chegou a ser usado com a adesão a uma doxologia ou louvor (Ne 8:6, 1Cr 16:36).

De fato o “amém” bem poderia traduzir-se em termos modernos como “assim me comprometo.” Jesus é o Amém de Deus (Apóc. 3:14, 2Cor 1:20), que “se santificou” por nos (Jo17:9) para ser obediente (comprometido) até a morte (Jo 13:1, Fil 2:8). Equivalentes hodiernos seriam o “sim” dos nubentes perante Deus, a assinatura de um contrato ou de uma declaração juramentada. Biblicamente, Deus mesmo é a testemunha de nosso Amém. Por isto mesmo dize-lo ligeiramente, sem respalda-lo com a vida e a ação, trazia como consequência o castigo divino. (Jer 11:3).

Amém não é mera interjeição para empolgar ou manipular auditórios. Paulo também insiste que o Amém deve ser coerente e inteligente. (1 Cor 14:15ss). Pronunciar amém de forma ligeira e frívola é um sacrilégio. Nosso Amém é a resposta que damos ao Amém de Deus em Jesus Cristo, isto é, nosso compromisso de viver e atuar com idêntica firmeza e comprometimento. Em Jesus Cristo, Deus afirma nosso valor e nossa salvação, e com nosso Amém nos afirmamos a entrega total de nossas vidas a ele. Assim Amém se torna um pacto de mutua fidelidade e comprometimento por toda a vida e até a morte. Evangelicamente, significa, não somente celebrar o fim de um culto, mas dedicar e comprometer toda nossa vida com o Senhor. Os anciãos terminam de joelhos, assim deve ser nosso Amém, um comprometimento submisso e alegre de toda a nossa vida com o Senhor.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

           

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 4 – O Comentário do Apocalipse de Juan Stam

CAPÍTULO 4

  1. A SEGUNDA VISÃO DO SENHOR:

                        O TRONO E O CORDEIRO (Apoc. 4 e 5)

Na primeira visão de João, o Filho do Homem aparece em meio aos sete candelabros e dirige sua mensagem pastoral a cada uma das sete igrejas da Ásia (Apoc 1-3). Em seguida João recebe uma segunda visão de Deus como aquele “que está sentado no trono” (Cap. 4) e do Cordeiro que venceu e é digno de abrir os selos (Cap. 5). Isto nos mostra que é necessário primeiro receber uma clara visão do Senhor, antes de contemplar as ambíguas e conflitivas realidades históricas (6:1-19:10). (O cristão faz uma leitura teológica, não ideológica, da realidade histórica.)

Esta dupla visão do Trono enfoca uma profunda teologia da história. O trono do Criador é o centro de todo o universo, de tudo que vive (4:6-8) e de todos que tem poder e autoridade (4:9-11). Frente ao pecado e a injustiça que andam soltos na história humana, o Cordeiro Redentor é declarado digno de desatar os selos do futuro (5:1-7), recebe uma adoração cósmica (5:8-14), e comparte o trono do Criador (Cap 5). Desde seu trono o soberano Deus entregou a Cristo as chaves do futuro; o Cordeiro é a chave redentora do sentido da história.

Deve notar-se também o caráter claramente litúrgico destes dois capítulos (A NVI dá destaque as cinco doxologias do texto). Este magno culto celebra (no tempo presente dos verbos), em meio as lutas e provas da história, a vitória segura de nosso Deus; é tão segura esta vitória final, que o céu a está festejando desde agora. Tudo isto nos permite entender que somente em louvor e cântico, ao redor do Trono e de joelhos perante o Cordeiro, podemos chegar a perceber o sentido da história.

  1. O TRONO DE DEUS, CENTRO DO UNIVERSO (Cap 4)

a. A sala do trono (4:1-8a)

O capitulo 4 começa com algo um pouco exótico para nós, mas típico de literatura apocalíptica: uma viagem ao céu. O propósito desta subida ao céu é, obviamente, receber uma nova revelação do Senhor. Na primeira visão, o Filho do Homem baixa a terra, para acompanhar sua igreja perseguida. Nesta segunda visão, João sobe ao céu, para entrar em contato com o mundo das realidades últimas. Ali ele permanece até o fim do capitulo 9, depois do qual a perspectiva mudara frequentemente entre céu e terra. É interessante notar que os Cap 4 e 5 não anunciam nenhum evento futuro. O único dado temporal que mencionam é passado: a morte, ressurreição e tomada do poder do Cordeiro (5:5-7). Mas aqui encontramos a chave hermenêutica que abre todos os selos da história, passada, presente e futura.

O primeiro que João viu no céu, no centro e o mais importante, é um Trono (4:2). Este trono vai dominar a visão dos Caps 4-5, e de fato, de todo o Apocalipse. Desde este centro decisivo, a perspectiva de João vai estendendo-se primeiro dos círculos mais próximos do trono (arco íris, os quatro seres viventes, e os 24 anciãos) até a esfera angelical (5:11) e, finalmente, a criação inteira (5:13). Mas o Trono sempre permanece central.

Aquele que estava sentado no trono, aparentemente anônimo, é o próprio Deus (4:2,3). Domiciano pretendia subir ao trono divino acumulando títulos blasfemos. João nos apresenta a mera glória de Deus como luz. Mas Deus aqui nem fala, nem atua. Seu silencio é mais eloquente que qualquer discurso. O Ocupante do Trono se nos é apresentado meramente pelo arco-íris, pelo brilho de três joias, acompanhados por dois fenômenos meteorológicos (relâmpagos e trovões) que saiam do trono. Para João “Deus é luz” (1Jo 1:5; cf 1Tm 6:16). (Para Dante a glória eterna não se podia expressar adequadamente pela escultura, por ser música, fogo e luz.)

As três joias são difíceis de identificar com segurança: iaspis, (NVI traduz por jaspe) era uma joia de várias cores, sendo a mais valiosa de um tom verde claro; sardion (NVI traduz por sardônio) era provavelmente uma pedra vermelha, cor de fogo ou de sangue, conhecida como rubi oriental; smarragdos (NVI traduz por esmeralda), era uma espécie de cristal que prismatizava a luz em forma semelhante ao arco-íris. A menção do arco-íris, além de enriquecer a descrição pictórica e de sinalizar a glória e a majestade de Deus, fazia também uma referência ao pacto de Deus depois do diluvio (Gn 9:8-17). O trono do Justo e do Santo está debaixo do sinal da graça e é rodeado pelo sinal de sua misericórdia fiel (e de seu amor perene). É impossível olhar para o trono sem ver o arco-íris. Devemos recordar que este pacto feito com Noé foi também um pacto com “todo os seres vivos” (Gn 9:10-13,15-17) e com (toda) a terra (9:13).

i. Os vinte e quatro anciãos (4:4-5)

Tendo apresentado o símbolo central do trono, João procede apresentando todo o cenário que rodeia o mesmo em círculos concêntricos. Primeiro introduz um grupo que vai figurar até o fim do livro: os 24 anciãos. O Sentado-no-trono, cujo poder está firmemente estabelecido e ocupa o centro do universo inteiro, comparte seu poder com outros tronos e outros “sentados”. O tema central da passagem é a devida relação entre o poder divino e o poder humano. A linguagem de 4:4 parece derivar-se de Daniel (7:9), onde os tronos do poder delegado rodeiam o Altíssimo no processo do juízo, ainda que aqui no Apoc. não se trate do juízo. Aqui se trata do governo universal de Deus sobre o cosmos e sobre a história. O poder está claramente centrado no Trono divino, mas não deixa de estar livremente compartido, em forma delegada, entre os “tronos” que o mesmo Senhor estabeleceu (cf Ro13). (Para “anciãos” leia-se governantes).

É muito importante recordar que esta visão do trono (cap 4) é uma adoração do Deus criador (4:11); todo o aspecto salvífico espera, mui dramaticamente, até o capítulo seguinte (5). Desde esta perspectiva, parece provável que o número 24 tenha haver com o tempo e a história dentro da ordem criada, sem considerações específicas a história da salvação, que somente aparece no capítulo seguinte. Se “doze” é o número que indica “totalidade” no âmbito histórico (12 tribos de Israel, 12 apóstolos do novo Israel), então a passagem parece dizer-nos que todo o poder e toda a autoridade, duplicada para maior ênfase, deve estar coordenada harmonicamente ao redor do poder d’Aquele Sentado no trono. Estes anciãos “vestidos de branco” com “coroas de ouro” (sinal de vitória, pureza e fidelidade) nas cabeças aparentam ser uma espécie de “senado de honra” para assistir a Deus no governo do universo.

João acrescenta alguns detalhes mais. Primeiro diz que: “Do trono saiam relâmpagos, vozes e trovões” (5a). Estes fenômenos meteorológicos eram típicos para caracterizar a majestade e os mistérios das teofanias do AT. Remontam a Ex 19:16-19, e também Ez 1:4,13. (Note-se um crescendo destes trovões de 8:5, e 11:19 a16:18, sempre depois do sétimo selo, trombeta e taca.)

Segundo, aparecem “acesas sete lâmpadas de fogo, ” (5b) que são varas ardendo em fogo numa de suas pontas cobertas de um pano e empapadas com resina flamejante, que João identifica como sendo “os sete espíritos de Deus”. (Os sete -número de plenitude, completo – espíritos seriam o Espírito Santo?)

Finalmente, aparece “algo parecido com um mar de vidro” (6) ou cristalino. Este mar deve ser entendido como símile que acrescenta esplendor, majestade e transcendência ao cenário. O mar cristalino aparece muito na imaginação poética cristã. No AT o mar é caótico, apavora e amedronta. Mas aqui o mar está sujeito a soberania de Deus, aos pés do trono divino, desprovido completamente de qualquer pavor. (Barth)

Mas vale uma vez mais observar que João diz que “me vi tomado pelo Espírito. ” (2) A preocupação com a política do Império não pode inibir a acessibilidade e disponibilidade ao Espírito (Tudo é política, mas política não é tudo. Embotar a sensibilidade espiritual conduz a morte espiritual). É a visão de Deus que nos dá o discernimento político correto. (Veja também 1:19)

 

ii) Os quatro viventes (4:6b-8a)

A figura destes quatro seres viventes é ao mesmo tempo fascinante como cheia de controvérsias. Lenski oferece 21 diferentes interpretações para estes seres viventes, refutando cada uma, só para apresentar a vigésima segunda, igualmente improvável. Não restam dúvidas que João deriva sua descrição de Ezequiel, Isaías e da literatura apocalíptica de sua época. Nem restam dúvidas que na imaginação apocalíptica de João estes quatro animais são vivos, falam e resultam ser nada menos que teólogos litúrgicos e doxológicos.

A melhor chave para interpretar o significado dos “quatro seres vivos” é o tema central de todo o capitulo 4: a criação (4:3,11). No contexto total do capítulo, pareceria acertado concluir que com estes quatro seres vivos João descreve a vida criada em suas variadas formas. O número quatro aponta aqui para a ordem criada, e os “seres vivos” para vida animada. Até a ordem dos quatro sugere os níveis sucessivos da existência biológica:  o leão (carnívoro, selvagem: rei da selva); o boi ou touro (herbívoro, domesticado); o ser humano (feito a imagem de Deus), e a águia (rainha dos céus).

Duas conclusões se impõem: 1) A partir da visão do trono todas as realidades do imperialismo de turno não passam de realidades secundárias. Domiciano não tem a última palavra. A palavra final será daquele que está Sentado no trono. Quando temos os olhos fixados no Trono e em seu Ocupante, as ameaças do Império são secundárias e passageiras. O primeiro requisito para sermos “realistas” é haver visto a realidade última: O Trono de Deus e seu ocupante e o Cordeiro que foi imolado. Tão equivocado quanto ver somente o céu, é não vê-lo. Mas se equivocam os que creem que olhar para o céu é alienante. Alienente é não vê-lo. A partir desta visão se faz necessário discernir o significado do contexto histórico em que vivemos.

2) A segunda conclusão, é que necessitamos urgentemente uma teologia da vida e do poder. João não tem dúvidas do centro de todo o poder: o Trono com seu glorioso Ocupante. O organograma cósmico de João não deixa dúvidas sobre quem ocupa o centro do poder. Quando o poder é teocêntrico todas as autoridades (poderes delegados) servem ao “reino de Deus e sua justiça” para que a boa vontade de Deus seja feita na terra como nos céus. Mas quando os “poderes derivados”, celestes ou terrestres, se tornam independentes do Trono central, se rompe o esquema divino, e se produzem a desordem e a injustiça na história e na criação.

Também não podemos esquecer que entre o Trono e os vinte e quatro anciãos está a vida simbolizada pelos quatro seres viventes. Aqui vemos que o poder delegado por Deus aos “tronos periféricos” deve servir a vida, e não a morte; a justiça, e não a injustiça. O mais próximo de Deus está a própria vida. Toda a autoridade criada tem o seu poder delegado somente para servir a vida (não a morte ou a opressão) que Deus compartiu com suas criaturas. Adorar ao que está sentado no trono é comprometer-se com a vida digna para todos? (Por adorar somente o Deus todo-poderoso, o cristão dá um assentimento somente critico a qualquer governo ou poder humano. E nunca deveria ser politicamente fanático. Governos também participam da queda. Fanatismo político é idolatria)

b. A adoração ao Criador (4:8b-11)

O trono de Deus, centro do inteiro universo, é um lugar ativo, de adoração constante. A litania celestial começa, algo surpreendentemente, com um fascinante quarteto litúrgico: na visão de João um leão, um boi, um ser humano e uma águia iniciam a ação com um muito solene Sanctus. (4:8b) A vida criada não se cansa, dia e noite, de louvar o seu criador. É a perpetua doxologia da vida que impulsa toda a liturgia cósmica que vai até o final do Cap 5.

A primeira doxologia é pronunciada, e não cantada. A música vocal começa somente depois da ressurreição do Cordeiro (5:9). A aclamação do Sanctus pelos quatro seres vivos, seguido pelo “és digno” dos 24 anciãos (4:11), inicia um movimento litúrgico que no cap 5 cresce com dois hinos ao Cordeiro cantados pelos quatro e pelos vinte e quatro juntos (5:8-10), por milhões de anjos (5:11-12), e culmina com um poderoso louvor da criação inteira “ao que está sentado no trono e ao Cordeiro” (5:13). Tudo termina com um forte “Amem” (5:14).

i) A adoração dos quatro seres viventes (4:8a-9a).

O Sanctus dos quatro seres vivos é uma inconfundível alusão a litania antífona dos serafins de Isa. 6:3. A triple repetição do adjetivo Santo é simplesmente a forma mais enfática do superlativo hebreu: muito, muito santo ou, simplesmente, Santíssimo.

A segunda frase “é o Senhor (kúrios), o Deus todo-poderoso (pantokrator)”. Tanto kurios como pantokrator eram títulos do imperador romano. Sem dúvida João aqui desacredita as pretensões idolátricas do imperador. Somente Deus é o Senhor Todo-Poderoso.

A seguinte frase retoma o tema do “eu Sou”, introduzida em 1:4 e 8, mas inverte a ordem, colocando o imperfeito (“que era”) antes do presente (“que es”). É provável que aqui também João escreveu frente a realidade dos fiéis, ameaçados pelo poder do Império Romano. Segundo Beasley-Murray esta mudança serve para sinalizar que 1) que o Senhor da criação é também o Senhor da história, e 2) que o futuro (“há de vir”) se caracteriza pela vinda do Criador e Soberano Deus.

Esta primeira doxologia destaca as três perfeições mais importantes de Deus para as comunidades ameaçadas: sua santidade, sua onipotência, e sua eternidade expressa em sua “vindas” históricas. (Ele vira para culminar a história.)

O v9 resume em termos distintos a oração dos quatro seres viventes e introduz a subsequente adoração dos anciãos (4:10-11).

Glória, honra e graça

aquele que está sentado no trono

que vive para todo o sempre! (A NVI não apresenta este texto poeticamente.)

As conhecidas atribuições “Glória e honra” João acrescenta uma palavra menos comum nas doxologia: ação de “graças” (eucaristia) (Para Barth estas duas palavras, graça e gratidão são o centro da teologia e da ética cristas). Mas saber que “Aquele … assentado no trono vive para todo o sempre” infundia alento e valentia aos cristãos perseguidos da Ásia.

ii) A adoração dos vinte e quatro anciãos (4:9b-11)

 Os vv (9-11) coordenam uma dupla ação litúrgica: sempre que os quatro seres viventes adoram o Ocupante do Trono com seu Sanctus inicial, os 24 anciãos seguem com uma tripla ação litúrgica (4:10) e com seu próprio louvor ao Criador (4:11). A passagem parece descrever uma incessante liturgia antífona: sempre que os 4 seres viventes entoam seu Sanctus, os 24 anciãos respondem prostrando-se e repetindo seu próprio louvor, com que os 4 seres viventes iniciam um novo processo.

Ao avançar o desenvolvimento da visão do Trono, se tornara cada vez mais evidente que a liturgia celestial é essencialmente antífona. Começa pequena e singela com o Sanctus dos quatro seres vivos, e num crescendo, acaba com o louvor de toda a criação a Deus e ao Cordeiro juntos (5:13). Cada passo do culto é uma resposta antífona harmônica e coerente ao anterior.

A ação litúrgica dos anciãos (4:10) é uma somente: descem de seus respectivos tronos e se prostram diante de Deus, colocando as suas coroas aos pês do Senhor. A pratica de colocar suas próprias coroas diante do Trono correspondia a uma pratica conhecida no mundo antigo, como sinal de submissão incondicional de um vencido a um soberano vitorioso. Os exércitos romanos levavam consigo uma imagem do Imperador para que monarcas vencidos pudessem colocar sua coroa ante a figura do soberano romano.

Enquanto os quatro seres viventes falavam de Deus na terceira pessoa (4:8), os 24 anciãos no seu “Es Digno” (4:11) mudam para a segunda pessoa, a fim de falar diretamente a Deus. Os 4 haviam proclamado a glória do ser de Deus em sua majestade e santidade eternas; agora os 24 oferecem uma dupla adoração que resume admiravelmente toda a primeira metade da visão do Trono (Cap. 4): adoram o Ocupante do Trono como (a) o Senhor e Deus nosso e como (b) o Criador do Universo.

A adoração dos anciãos (4:11) toma a forma de “és digno”, desconhecida entre os hebreus. (Axios não aparece na LXX). Este tipo de aclamação “és digno” caracterizava o culto ao imperador nos tempos de Domiciano. Quando o Imperador entrava em Roma em sua procissão triunfal, as multidões gritavam: “tu es digno (vere dignus), senhor e deus nosso. ” Ao usar a linguagem política da época os cristãos afirmavam que somente Deus, a não Cesar, é digno de adoração. (4:11)

A primeira frase “tu, Senhor e Deus nosso” também não tem antecedentes no AT, nem aparece na LXX. Mas é a tradução fidedigna do título que Domiciano reclamava para si mesmo: Dominus et Deus noster. Mais uma vez a relativização do poder imperial. (Os cristãos são iconoclastas em relação a qualquer tentativa de divinização do poder. Ser cristão lucido é ter um senso crítico.)

A segunda frase acrescenta a “glória e honra” mencionadas antes, o “poder”. A inclusão do pronome “tu” em posição enfática dá um sentido de exclusividade: “tu, somente tu, criaste o universo, de modo que somente tu es digno de adoração. ” A criação do universo (ta panta) é o tema central deste cap. Mais uma vez, adoração, somente ao Deus, todo poderoso, criador de todo o universo. (Não Domiciano).

Alguns ensinos que nos parecem merecedores de destaque: (a) Somente o Criador é digno de adoração; (b) Todas as coisas foram criadas para a adoração do Criador; (c) Esta relação entre o Criador e a criação descarta qualquer conceito dualista antagônico, entre matéria e espírito, ou entre o corpo e a alma; (d) Esta teologia da criação concede o poder e o direito ao Criador de intervir em sua criação e na história; (e) Este Criador, que é aquele “que há de vir”, atuara com todo seu poder soberano para resgatar seu povo ameaçado e para conduzir a história a seu fim. Os 24 proclamam que tudo foi criado por Deus e deve servir os propósitos de sua vontade. Uma vez que tudo foi criado com o beneplácito de Deus, implica também uma vocação. Nossa própria criação nos convoca a querer tudo aquilo que Deus mesmo quis ao criar-nos. Isto é, aceitar-nos como criatura é consagrar-nos completamente para cumprir Sua vontade. Este é o nosso louvor.

A adoração é mais do que um prazenteiro passatempo espiritual para o deleite sublime da alma. (Kierkegaard chamou a louvação meramente estética de blasfêmia e abominação diante do Senhor). A verdadeira adoração deve conduzir-nos ao nível ético e existencial. Estar diante do Criador do universo e do Senhor da história significa comprometer-nos historicamente com sua vontade.

A adoração verdadeira nunca pode ser historicamente escapista nem politicamente neutra. É impossível adorar verdadeiramente sem comprometimento com os valores do reino de Deus (amor e justiça) e a vontade daquele que está sentado no trono. Ou não é adoração, mas simplesmente hipocrisia. A adoração e a oração são os atos mais revolucionários que podemos praticar. A verdadeira adoração sempre parecera subversiva e perigosa.

CAPÍTULO 3 – O Comentário do Apocalipse de Juan Stam

CAPÍTULO 3

 

e) Cristo fala a igreja de Sardes:

                       Uma igreja famosa, mas morta (3:1-6)

 

Sardes era uma cidade antiga, fundada 1200 anos AC. Era localizada estrategicamente na confluência de cinco rotas comerciais. Tornou-se um centro econômico. Depois de um período de declínio, recuperou sua importância nos tempos do Império Romano.

Rica, confiante em sua localização estratégica numa acrópole, Sardes tinha a ilusão de riqueza fácil e de ser inexpugnável militarmente. Jesus Cristo se apresenta aqui mais uma vez com características do Capitulo 1.  Aqui, primeiro, ele tem “os sete espíritos” (3:1), sendo portador da plenitude do poder do Espirito vivificante, única esperança para uma comunidade morta.

Segundo, ele tem “as sete estrelas, ”, isto é, ele é aquele que anda em meio as suas igrejas, e as conhece, porque sua personalidade corporativa espiritual está em suas mãos.

Jesus depois de fazer um rápido reconhecimento da fama da igreja de Sardes, afirma: “Conheço as suas obras; você tem fama de estar vivo, mas está morto. ”  (3:1c) Aparentemente Sardes era uma igreja grande, respeitável, de moda, sem polemicas internas, e muito admirada por sua aparente vitalidade.

Mas a “opinião pública” não inibia o penetrante diagnostico critico de sua realidade, feita pelo Senhor. Somente aqui o Senhor já começa com uma severa censura: você tem fama de ser viva, mas na realidade está morta.

A condição da igreja é diagnosticada por três sintomas mortais. Primeiro, ela está dormindo, não vigia, sem dúvida por confiar em sua fama de igreja viva. Cristo deseja despertar a igreja de seu estado agônico.

Segundo, vê na igreja de Sardes uma mediocridade espiritual banal: diante de Deus você aparece como uma igreja que não leva nada até as últimas consequências. “…não achei as suas obras perfeitas aos olhos de meu Deus. ” (2:2)

Terceiro, a maioria deles haviam “contaminado as suas vestes ”, indicando aparentemente sua acomodação ao culto do imperador ou ao culto da importante deusa da cidade, Cibele.

Por causa de sua mediocridade e covarde indefinição perante a idolatria imperial, esta igreja não sofre oposição alguma, nem da sinagoga, nem do império. Sardes representa o típico “modelo de Cristianismo inofensivo… demasiado inócuo para ser perseguido. ” (Caird)

Cristo chama o anjo da igreja de Sardes a despertar-se. “Esteja atento”! (2:2) Se não vigias venho desapercebido “como um ladrão. ” (2:3d) O chamado a despertar-se, a ser vigilante, deve ter impactado fortemente os cristãos de Sardes, porque esta cidade foi tomada duas vezes por falta de vigilância. Ainda que a metáfora do “ladrão” seja usada no NT para o retorno final de Cristo de surpresa, aqui, como em Éfeso (2:6) e Pérgamo (2:16), esta é uma visitação histórica. (O retorno de Cristo não depende do arrependimento das igrejas de Éfeso, Pérgamo ou Sardes.) Aqui temos uma visitação histórica do Senhor, em futuro próximo, para exercer sobre a igreja o juízo divino. Esta visitação não envia prévio.

Ainda que a apostasia pratica de Sardes era generalizada, havia na igreja uma minoria fiel: “uns poucos que não contaminaram suas vestes. ” (3:4) (Notemos a deterioração progressiva de Éfeso a Pérgamo e Tiatira (minoria) até Serdes, onde somente “uns poucos” eram fieis.)

Sem dúvida os cristãos de Sardes entendiam o significado de “não contaminaram as suas vestes. ” (3:4) Podemos supor que João se referia ao nicolaitismo da acomodação a religião e a cultura da cidade. O conformismo havia contaminado suas vidas e testemunho.

O remanescente fiel, que não contaminou suas vestes=vidas tem uma promessa gloriosa: “Eles andarão comigo, vestidos de branco, porque são dignos. ” (3:4b). Estas promessas são escatológicas. Mas a promessa da vitória não é somente para os mártires. Ela é para todos que “são dignos. “ Cada cristão que se veste, aqui e agora, com as vestes brancas do caráter cristão e da fidelidade tenaz ao Senhor, vestira as roupas luminosas da gloria no dia de sua vinda.

Branco era a cor do dia de vitória, mas também a cor das procissões triunfais do imperador. (Cf. 6:1) Em uma cidade de tinturarias, a figura da brancura expressava com forca e beleza o privilégio dos fieis de compartir, eternamente, como por reflexo, a gloria de seu Salvador e Senhor. Esta carta termina com uma promessa triple: O vencedor será 1) “vestido de branco. ” 2) “Jamais (negativo duplo) apagarei seu nome do livro da vida, ”e 3) mas “o reconhecerei diante de meu Pai e dos anjos. ” (3:5) Já comentamos o significado das vestes brancas. O “livro da vida” nas Escrituras se refere sempre aos redimidos do povo escatológico de Deus. (12:1, Lc 10:20, Fil 4:3, Heb 12:33, Ap 21:27). Com a ênfase do negativo duplo, esta passagem afirma que Deus nunca jamais borrara o nome do cristão fiel do livro da vida.

Finalmente, Cristo mesmo confessara o nome do discípulo fiel diante de Deus Pai e de seus anjos. Aqueles que haviam confessado a Cristo Senhor diante de juízes e governadores do Império Romano, Cristo os confessara diante de Deus e dos anjos. A ideia central destas promessas é que a fidelidade a Cristo garante a vida eterna, sem passar pelo juízo.

Numa cultura de culto ao êxito, nosso Baal nos conduz a exitolatria. Para o Senhor o que vale não é a quantidade acomodada, mas a fidelidade tenaz.

 

                   f) Cristo fala a igreja de Filadélfia:

Uma igreja débil, mas fiel (3:7-13)

Filadélfia era não somente a menor das sete cidades, mas também a de menor importância. Foi fundada para sua exercer uma finalidade estratégica:  seria uma espécie de ponta de lança da cultura helênica em sua penetração ao interior da província. A cidade sofreu inúmeros terremotos.

A igreja de Filadélfia Cristo se apresenta como aquele que é: 1) o “santo, ” 2) o “verdadeiro” =veraz, e aquele que “tem as chaves de Davi.” (3:7b) “Santo” nas Escrituras geralmente se refere a Deus (4:8, 6:10) Mas nos Evangelhos se atribui o título também a Jesus (Mr1:24, Lc1:35, 4:34, Jo 6:19), sinalizando sua total separação para Deus, em obediência messiânica. (Jo 17:19)

O “verdadeiro” (ou veraz) indica a integridade total de Jesus. Hoje o chamaríamos de ‘autentico’, em quem não há engano ou falsidade. Em 2:14 e 19:11 se une o apelativo “fiel” ao de “verdadeiro, ” indicando que Cristo é totalmente confiável para cumprir suas promessas.

Em terceiro lugar, Cristo e aquele que “tem a chave de Davi. ” (Veja Is 22:22 e 2R18:18) Como Eleaquim exercia poderes quase absolutos no governo do rei Ezequias, Cristo tem o poder incondicional e irresistível para abrir e fechar as portas da Nova Jerusalém (3:12) e do Reino da vida (Cf 1:18).

O diagnóstico do divino radiologista da igreja de Filadélfia, pequena e importunada pelo governo e pela sinagoga local, revela que esta era uma igreja fiel. Nosso primeiro chamado é para sermos fieis, e não para sermos numerosos.

A primeira promessa, de uma “porta aberta”, parece indicar uma porta de oportunidade missionaria, conforme a intenção original de sua fundação. Mas pode ter significado também a entrada franca no reino de Deus e na Nova Jerusalém.

Tudo isto se promete a uma igreja que tem pouco “forca” (poder, influencia, imagem). Somente em união com Cristo sua “pouca forca” pode revestir-se de “todo o poder” de Cristo. (Fl3:10, 2Co12:10; Cf 1Co 1:25-29)

O tempo aoristo dos verbos “guardou” (a minha Palavra) e “não negou” (o meu nome) devem provavelmente se referir a algum momento especifico de provação em que os cristãos de Filadélfia resistiram a tentação de acomodar=se ao culto imperial. A pequena igreja de Filadélfia foi fiel a Palavra. E porque “guardou a minha palavra de exortação a perseverança (tenaz), eles também serão guardados pelo Senhor na hora da provação que vira sobre o mundo. (3:11)

Negativamente, a forma de guardar a Palavra para os filadelfinos foi a de não negar (atraiçoar) o nome de Cristo, o Senhor (kurios). Filadélfia não se tornou um centro do culto do imperador romano até o século seguinte. Mas é provável que as autoridades romanas, incitadas pelos judeus, trataram de pressionar os cristãos de Filadélfia a reconhecer Cesar como kurios. Mas a igreja não atraiçoou o nome de Cristo, o Senhor (kurios). Por terem sido fiéis ao nome do Senhor, este lhes promete um nome glorioso e triple. (Veremos mais abaixo.)

A segunda promessa aos cristãos de Filadélfia, vem conectada com uma acusação aos judeus (“sinagoga de Satanás”) mentirosos (incentivando as autoridades romanas contra a igreja): “Farei que se prostrem aos seus pês, e reconheçam que eu os amei. ” (3:9c) A base do argumento é a convicção neo-testamentaria de que a igreja agora era o “novo Israel. ” (Rm 9:6-9, Ga 3:7-9, 6:16). Aqui encontramos uma inversão total de papeis: os judeus, que esperavam receber a prostração dos gentios, terão eles mesmos o papel dos gentios de prostrar-se juntamente com eles a igreja, que haviam caluniado e perseguido. (Há três interpretações desta reversão de papeis: 1) a humilhação dos judeus e a vindicação dos cristãos (Moule); 2) a salvação final dos judeus (Ladd) e 3) a conversão de alguns judeus num futuro próximo.

A terceira promessa a igreja de Filadélfia afirma: “Visto que você guardou a minha palavra de exortação a perseverança (tenaz), eu também o guardarei na hora da provação que está por vir sobre todo o mundo, para pôr a prova os que habitam na terra”. (3:10) Sem dúvida o fio semântico desta sentença é o verbo “guardar”. Como a igreja guardou a palavra de exortação a perseverança fiel, assim também Cristo vai guardá-la na ora da provação eminente. Quem permanece fiel tenazmente, mesmo até a morte, não perderá a “coroa da vida”. (3:11)

A igreja de Filadélfia era uma igreja da Palavra, que estudava, cria e, sobretudo, praticava. Como discípulos os filadelfinos seguiam o Cordeiro “por onde quer que vá.” (14:4) Para eles o seguimento do Senhor significava imitar fielmente a constância e a tenacidade com que Cristo foi até a cruz. (Hb 11:1, 2T 3:5) Como para a igreja de Esmirna, Cristo também aqui anuncia maiores e piores provações, quer históricas, quer escatológica. Seja como for, aqueles que guardavam a Palavra com perseverança tenaz, Cristo mesmo se encarrega de guarda-los na provação. Os cristãos serão objeto da fúria da “besta”, mas o juízo se dirige exclusivamente aos infiéis, ou “habitantes da terra”, ou mundanos. (7:3-13, 9:4, 14:9-11, 16:2) “Os habitantes da terra” no Apocalipse sempre se referem aos que pertencem ao mundo pagão.

(Exegeticamente é muito pouco provável a interpretação dispensacionalista de fazer coincidir a “hora da provação” com o “rapto” de 1Ts 4:17. É muito mais provável entender o paralelo de Apoc 3:10 com o que lemos em Jo 17, onde os que guardam a palavra do Senhor são guardados por ele. (Jo 17: 5, 11, 12, 15)

Mas além da vinda de provações, há uma outra vinda muito mais importante: “Venho em breve! ” (3:11) Uma vez mais não se impõem uma opção entre uma vinda temporal, histórica e a escatológica, a vinda final de Cristo com poder e gloria.

Durante o processo histórico e preciso praticar a resistência. “Retenha (imperativo presente) o que você tem.” (3:11) Isto é, retenha “a minha Palavra de exortação a perseverança” (3:3) o que nunca deve conduzir a uma falsa confiança, muito menos a acomodação ao império. Esta é a única exortação que Cristo faz a igreja de Filadélfia. Se não afrouxarem a resistência tenaz, vão receber a coroa da vida, (2:10, 3:11)

Além da ausência de qualquer censura a igreja de Filadélfia, ela recebe o maior número de promessas e a maior benção. A primeira promessa ao vencedor nas provações é tornar-se colunas no santuário de meu Deus.”  (3:12a) O simbolismo garante um lugar dentro do templo da comunhão de Deus e de Cristo. Um lugar seguro. Uma vez que “coluna” significa firmeza e estabilidade, a esta promessa também animaria a firmeza e tenacidade em meio as provações. Mas também a garantia de um lugar proeminente no reino de Deus.

A segunda promessa garante ao vencedor: “dali jamais sairá.” (3;12c) Aparentemente temos aqui uma metáfora mista: como uma coluna não pode sair do templo, nada nos pode separar da comunhão com Deus. (A frase também pode se relacionar aos frequentes terremotos de Filadélfia, que forcava a evacuação da população.)

A terceira promessa é a inscrição de um triple nome sobre a fronte com Deus dos fieis: 1) o nome de Deus, 2) o nome da Nova Jerusalém e o 3) nome de Jesus Cristo mesmo. Em seu conjunto, estes nomes significam que os fiéis pertencem plena e ternamente a Deus (Pai) e a Jesus Cristo, gozando para sempre de uma comunhão incondicional com Deus e tendo para sempre uma cidadania irrevogável no reino vindouro. Os vencedores pertencem total e eternamente a Deus, e estarão seguros no seu Reino.

O segundo nome, “o nome da cidade de Deus, a Nova Jerusalém”, sinala a profunda importância da comunidade de fé na história e no século vindouro. A promessa significa que o vencedor fiel estará inscrito como cidadão pleno e permanente na Cidade de Deus.

O terceiro nome é “meu novo nome. ”(12c) Este novo nome pode entender-se como kurios. (Fl 2:9-11, Apoc 19:11-16)  Mas também pode ser que haverá no fim da história uma revelação ainda mais gloriosa de Jesus Cristo, que agora ainda não podemos assimilar. (Mounce)  Este nome extraordinariamente incomparável estará na fronte dos vencedores fieis até para sempre.

Para os hebreus, o nome marcava o sentido mais profundo do ser nomeado. Assim, o novo nome pode sinalizar a nova realidade em que os vencedores participarão plenamente. Jesus mesmo, como novo Adão, vai transformar todas as coisas renomeando-as.

 

g) O Ressuscitado fala a uma congregação ensimesmada: Laodiceia.

                   Uma igreja orgulhosa, que dava asco a Cristo!

 

A carta a igreja é uma joia literária. Combina censura enérgica, ironia sutil e ternura cheia de compaixão. Sua mensagem pastoral, ética e teológica pode ser considerada a mais profunda das sete cartas. Laodiceia chegou a ser a cidade mais rica do vale do rio Lico, tornando-se um dos centros comerciais mais ricos do mundo. Localizada estrategicamente, junto com uma significativa indústria têxtil, sua vida econômica a converteu num grande centro financeiro e bancário.

Laodiceia era orgulhosa de sua riqueza. Depois do grande terremoto de 60-61 AC, ele se reergueu sozinha. Dispensou a ajuda imperial. Isto produzia na população uma ilusão de autossuficiência, superioridade e prepotência. Não precisavam da ajuda de ninguém.

Esta é a única carta em que nenhum dos traços do Filho do Homem (1:9-20) aparecem. Cristo se apresenta como o 1) “Amem”, a 2) “Testemunha fiel e verdadeira” e o 3) “Soberano da criação.”

Como o “Amem”, que significa solidez, constância estabilidade e lealdade, se converte um termo básico da fé bíblica em título de Jesus Cristo. Em Isaias 65:16 (NVI traduz por “verdade”) o título se atribuía Deus, ao Deus do Amem. Esta identificação do título com Jesus Cristo com Deus, afirma novamente a identificação de Jesus Cristo com Deus mesmo. Cristo é totalmente confiável.

Jesus Cristo é também uma “Testemunha fiel e verdadeira”. Isto se dirigia aos cristãos não judeus, afirmando novamente que Cristo é totalmente confiável. Cristo é fiel e veraz, em comparação com as vacilações inconstantes dos de Laodiceia.

O terceiro título, o “Soberano da criação”, pressupõem o conhecimento da Epistola de Paulo aos Colossenses, que também deveria ser lida em Laodiceia. (Col 4:16) e do Prologo do Evangelho de Joao. Aqui Cristo afirma a mediação e a primazia na criação.

O diagnóstico que Jesus Cristo faz da igreja de Laodiceia é o mais severo das sete cartas. Não aparece nenhum elogio secundário. De saída se afirma que o anjo de Laodiceia dava náuseas ao Senhor. “Você não é frio (gelado), nem quente (fervente) … Assim, porque você é morno …, estou pronto de vomita-lo da minha boca. ” (3:15-16) Aqui não se menciona um pecado especifico, mas se salienta um pecado de atitude: seu autoconfiante em-si-mesmismo, sua tranquila indiferença, mas sempre considerando-se cristãos exemplares. Somente aqui aparece este termo “morno” nas Escrituras, mas foi usado por Heródoto com aguas que produzem náuseas.

A carta de Laodiceia é a que mais referencias faz as circunstancias particulares da cidade. Apesar de ser um centro bancário e comercial, Laodiceia carecia de boas aguas potáveis. As ruinas de hoje ainda mostram restos dos aquedutos que vinham do sul. Próximo a Laodiceia se encontrava Hierapolis, famosa por suas aguas termais, quentes. E Colossos, tinha fama por suas aguas frescas e saborosas. Mas as aguas de Laodiceia não eram nem uma, nem a outra coisa. Davam ânsias de vomito.

Por isto não devemos ver no texto a preferência de Deus por temperaturas extremas. As aguas quentes de Hierapolis relaxavam e sanavam o corpo. As aguas frescas e saborosas de Colossos refrescavam os sedentos. Mas as aguas de Laodiceia eram repugnantes e provocavam náuseas. A metáfora tem a ver com a mediocridade acomodatícia da igreja de Laodiceia. É muito provável que estes “mornos” laodicenses não se definiam ante o sistema idolátrico que a rodeava, para não arriscar seus interesses econômicos e muito menos suas próprias vidas por Cristo. Em tempos decisivos e críticos, como os de Joao e os nossos, ser medíocre e covarde é realmente vergonhoso e repugnante aos olhos do Senhor. Ser mormo é pecado.

Cristo expõem a soberba ilusória dos laodicenses contrastando o que “Você diz” (“Estou rico… e não preciso de nada”) com você “Não reconhece” (que é miserável, digno de compaixão, pobre, cego e nu) (17). Laodiceia vivia num autoengano espiritual. Se creiam ótimos, de fato eram péssimos. A leitura da carta na igreja foi desconcertante?

O diálogo de Cristo com a igreja procede em três passos: 1) Primeiro, enfrenta a opinião soberba que os laodicenses tinham de si mesmos (3:17a), 2); segundo, ele expõe a verdade de sua triste realidade (3:17b) e 3) finalmente, o Senhor lhes aconselha como podem remediar sua condição. (3:18)

Os argumentos se desenvolvem de forma mui simétrica. Os laodicense se jactam, em três expressões quase idênticas, de serem muito ricos. Mas Cristo lhes responde que realmente são pobres (com três adjetivos) cegos e nus. As três exortações que seguem correspondem a esta triple caracterização: Comprar ouro refinado, para deixar de ser pobre; comprar vestiduras brancas para cobrir sua nudez; e colírio, para que possam voltar a ver. A narrativa culmina com uma contundente denuncia e um chamado ao arrependimento. (18)

A fonte da riqueza de Laodiceia era as finanças bancarias (ouro), a indústria têxtil (vestidos) e a medicina (colírio). (Seu orgulho advinha da auto- reconstrução depois do terremoto de 60AC). A igreja de Laodiceia deve ter sido também rica, em contraste com Esmirna, igreja pobre, mas fiel, numa cidade rica. Laodiceia aparenta ser uma igreja acomodada ao seu entorno, ao ponto de tornar-se infiel. Sua autossuficiência se baseava na confiança em seus próprios recursos, especialmente financeiros. (Aqui encontramos algo da altivez do fariseu (Lc 18:11) e da arrogante jactância da prostituta (18:7). O importante não é a auto compreensão, mas como Cristo vê a sua igreja. A igreja pode enganar-se a si mesma. Mas não engana a Cristo.

É justamente a esta igreja que tinha a mais elevada auto compreensão (boa imagem) de si mesma, Cristo dirige o linguajar mais severo. A igreja de Laodiceia pensava que era rica, em três expressões sinônimas. Cristo lhes afirma que são pobres (com três adjetivos), cegos e nus. Os três adjetivos podem ser parafraseados como “um pobre desgraciado que dá lastima. ” Possivelmente se sentiam humilhados de serem chamados de “pobres” numa cidade que se jactava por sua riqueza. Igualmente, serem chamados de “cegos” numa cidade conhecida por seu famoso colírio ou unguento oftalmológico. Seu grande problema era sua cegueira sobre sua própria realidade. Para um judeu a maior vergonha era ser visto nu. Mas os cristãos de uma cidade conhecida por sua lá finíssima são desnudados por Cristo, e vistos em sua verdadeira bancarrota espiritual.

As recomendações que Cristo faz aos laodicenses correspondem muito logicamente ao triplo diagnostico anterior. 1) Primeiro, “Compra de mim ouro refinado. ” Não compre notas bancarias. Mude de mercado. Em vez de continuar investindo nos valores passageiros de contas bancarias, deveriam investir nos valores eternos do Reino de Deus (santidade, amor e justiça). Como diz a parábola, deveriam vender tudo, para investir na perola mais preciosa. (Mt13:46) Como o estado “morno” deles implicava as acomodações dos laodicenses as exigências imperiais, o “ouro refinado” provavelmente significava a fidelidade a Cristo até a morte, para então vestir a roupa branca da vitória.

2) Numa cidade famosa por suas tecelagens e tinturarias, fabricas de roupas finas e de tapetes, onde as pessoas se vestiam bem (com boa grife), Cristo os convida a deixarem sua nudez, para se vestirem dele mesmo, de sua justiça, de sua santidade e pureza, e amor. E fidelidade até as últimas consequências.

3) Para mudar de situação espiritual, os laodicenses acima de tudo, teriam que ver-se a si mesmos como de fato são. Sua cegueira espiritual resultava irônica numa cidade fabricante de um eficiente colírio, conhecido como “pó frígio. ” Eles se consideravam de excelente visão, mas Cristo os considera cegos. Como não conseguem ver-se a si mesmos em sua condição de pecado e de mornos, também não conseguem ver claramente a Cristo, nem a Deus. Eram cegos a realidade da situação em que viviam, e a vontade de Deus para seu testemunho perante o mundo.

A partir de Apoc 3:19 a severidade implacável da carta se transforma na expressão da maior ternura. Depois do “Repreendo e disciplino aqueles que eu amo”, vem o convite ao arrependimento, a mudança de vida, de lealdade, e de Senhorio. Arrependimento é sempre uma graça. O arrependimento é a dobradiça que faz a vida girar para a benção, ou para o juízo. Agora aparece a metáfora mais sublime destas cartas, quando Cristo assume a posição de um peregrino suplicante que espera junto a porta dos laodeiceses mornos. “Eis que estou a porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei e cearei com ele, e ele comigo. ” (3:20) O Senhor dos Senhores espera que os mornos de Laodiceia abram a porta de suas vidas. Aqueles que antes lhe davam náuseas, agora os solicita a que o deixem entrar para cear com eles. Até hoje, ele se para pacientemente a porta de nossa vida, toca pacientemente, chama com sua voz—e não vai embora. Se abrirmos a porta, ele vai cear conosco, uma expressão de profunda amizade, confiança e comunhão. (Jo 14:23)

A vinda de Cristo neste texto não se refere a segunda vinda final do Senhor, mas de uma “visitação” pessoal para o cristão arrependido (pronomes pessoais singular). Mas não necessitamos esquecer o banquete final em que o senhor beberá conosco novamente o fruto da videira. (Mt 26:29)

Esta carta termina, afirmando: “Ao vencedor darei o direito de sentar-se comigo em meu trono, assim como eu também venci sentei-me com meu Pai em seu trono. ” (21) Aqui Cristo, através de um preso político, assegura a uns cristãos ameaçados e fracos a sua vitória final sobre seus inimigos e o triunfo final do Reino do Cordeiro. É profundamente chamativo que a pior congregação, a qual teve que censurar com uma severidade próxima ao sarcasmo ácido, Cristo agora estende o convite mais enternecedor e a promessa mais exaltada e atrevida destes capítulos.

O vencedor vence com Cristo e é vencedor em Cristo; assim, comparte com Cristo a mesma vitória e o mesmo trono. Aqui Joao esclarece o que significa “vencer.” Não há outra maneira de vencer que a do Cordeiro que foi imolado e venceu (5:5-6). O Testemunho fiel foi morto e ressuscitado e é agora o soberano dos reis da terra. (5:13, 22:1,3; 7:10, 12:5) Agora, depois da morte vencedora de Jesus, os vencedores são aqueles em que Cristo volta a vencer. (12:11, 14:4) Os que compartem a mesma luta e vitória de Cristo também compartirão o mesmo trono que ele comparte com o Pai. Cristo comparte o prêmio de seu triunfo com seus discípulos, que por sua vez compartem com ele a fidelidade até a morte. (cf. 1:2,4,9)  O poder de Cristo é participativo.

Ser cristão é uma opção radical. Nunca um meio termo entre fidelidade e infidelidade. Estas cartas terminam com um tom político. Os que vão reinar com Cristo no mundo vindouro não podem ser omissos em sua vocação a uma radical responsabilidade cívica, socioeconômica e política neste mundo, como prenuncio de reinar com ele no mundo por vir.

(Nota do abreviador e tradutor aos que desejam pregar uma serie de sermões sobre estas cartas. Consulte o comentário original em espanhol para uma abundância de material que não pude incorporar nesta abreviação. Não é tão difícil fazer uma contextualização destas cartas as igrejas tupiniquins. O crescimento paralelo das igrejas evangélicas e da corrupção endêmica revelam que nem tudo está bem entre nos. Que simbiose satânica! A partir do Capitulo 6, desejo abreviar ao máximo, dentro do que permite a compreensão da linha de pensamento do texto original de Juan Stam).

CAPÍTULO 2 – O Comentário do Apocalipse de Juan Stam

CAPÍTULO 2

  1. O Filho do Homem manda mensagens as suas igrejas (2:1-3:22)

Notemos que as primeiras mensagens do Senhor são para a Igreja. Ao apresentar-se as igrejas Cristo repete detalhes da visão inicial (1:12-18). Os capítulos 2 e 3 são uma espécie de comentário pastoral do Capitulo 1.

Se torna evidente que João conhecia profundamente as suas igrejas, bem como as idiossincrasias de cada cidade em que atuavam. Faz uma teologia contextual. Será que o Senhor teria podido dar a João a sua mensagem sem que ele mesmo tivesse feito uma análise espiritual, um inventario, de cada uma delas? Estas visitas pastorais do Senhor visavam preparar as igrejas para enfrentarem as crises que se avizinhavam.

O senso litúrgico e estético de João se torna evidente na estrutura destas cartas, que tem partes fixas e partes variáveis. As partes fixas são as seguintes:

a) “Ao anjo da igreja de … escreve: ”

“Estas são as palavras daquele que…” (seguindo uma das caracterizações de Cristo do Capitulo 1)

b) “Conheço as tuas obras, ”, ou “sofrimentos, ” ou “onde vives” (etc.)

c) “Aquele que tem ouvidos, ouça o que o Espirito diz as igrejas…”

d) “ Ao vencedor darei…”

As partes variáveis são as seguintes:

a) Um retrato de Cristo, baseado especialmente na visão do Capitulo 1, e adequado as características e situação de cada igreja.

b) Uma radiografia espiritual de cada igreja, com o bom e o mau, e a correspondente admoestação ou elogio,

c) E uma promessa ao vencedor, que corresponde a lógica e estilo do corpo de cada carta.

As cartas são escritas a sete igrejas da província romana da Ásia Menor, hoje Turquia. Neste contexto a fé crista teve seu primeiro encontro com a cultura helenista, mas também com a realidade política romana. As sete cidades, com exceção de Tiatira, eram acessíveis pela rota de correio romano, sendo de importância comercial. A Ásia Menor era também um centro do culto ao imperador. Outras igrejas da área, como Colossos, não são mencionadas, porque o número sete representava a igreja em sua totalidade.

Cada carta é dirigida “ao anjo da igreja…” Nenhuma explicação aclara completamente este estranho uso literário. Sem dúvida o conteúdo de cada carta se refere a toda a igreja, e não somente a seus líderes. Aparentemente o “tu” singular sugere a personalidade corporativa espiritual, a interioridade mais profunda, a Gestalt de cada igreja. O conteúdo de cada carta resulta claro e coerente se o “tu” (que a NVI abrasileirou em “vocês ”) se entende como “tu” ou “você”, igreja. Ao falar a cada igreja em particular o Espirito também fala a toda a Igreja.

a) Cristo fala a igreja de Éfeso:

Uma igreja ativista, sem amor. (2:1-7)

A primeira palavra profética que João recebe tem a ver com a igreja (ou as igrejas.) Cada igreja é realmente uma hermenêutica viva do Evangelho, autentico ou…

Éfeso era a cidade mais rica e importante da região, também o porto principal da Ásia Menor. Era um centro cultural e religioso, com sua deusa Artêmis (Diana). Como cidade livre tinha seu próprio governo, e funcionava como capital da região. Foi também pioneira do culto ao imperador romano, criando um sincretismo entre o culto imperial e o culto a Artêmis. A igreja de Éfeso era a igreja mãe de todas as outras da Ásia Menor, por onde o Evangelho se expandiu. Tiveram uma sucessão pastoral invejável (Paulo, Timóteo, João). Éfeso veio a ser um importante centro de literatura crista.

João atribuiu a esta significativa, grande igreja uma falha fatal. “Você abandonou o seu primeiro amor. ” (2:4) A igreja que antes era um modelo de ardente amor cristão, agora havia esfriado. Sem amor todo seu ativismo, sucesso numérico e orçamentário, mesmo sua fidelidade doutrinal não teve valor diante do Senhor.

Sofriam eles da síndrome dos cristãos de segunda geração em que o amor se dilui num processo de institucionalização e burocratização? A máquina eclesiástica de meio se transforma em fim?

Para o Senhor não bastam o ativismo e o êxito numérico. Nem mera ortodoxia. O Senhor não aprova um doutrinaríssimo celebriza, mas odiento. A igreja, acima de tudo, deve ser um espaço de um profundo amor a Deus, uns aos outros e ao próximo. Esta é sua marca de autenticidade crista. Deve a igreja tratar o pecador, mesmo o herege, adequadamente? Sem dúvida deveriam repudiar “as obras dos Nicolaitas”, por ser uma acomodação covarde e fácil ao culto imperial. Mas uma igreja odienta não é uma igreja crista. Nem é crista uma igreja que se acomoda de forma fácil e covarde a uma sociedade de consumo piedosamente crista.

Três verbos no imperativo constituem a exortação aos cristãos de Éfeso. “ Lembre-se de onde caiu. Arrependa-se, e pratique as obras que praticavas antes. ” Ha confirmações históricas que Éfeso se arrependeu, e seguiu sendo uma igreja significativa por vários séculos. (São Inácio)

Ainda hoje devemos escutar o que o Espirito diz as igrejas. A pergunta é: como em meio a tanto ativismo eclesiástico e efervescência política, escutamos a voz do senhor? Vencedores serão aqueles que ouvem a palavra profética e a praticam, ou cumprem. O vencedor “terá direito de comer da arvore da vida, ” antes proibido. Parece que João compara a “arvore=madeiro da vida” com o “madeiro da cruz. ” Na fidelidade até a morte, nosso sofrer por Cristo transforma o madeiro da cruz em arvore da vida.

b) Cristo fala a igreja de Esmirna:

Uma igreja pobre, mas realmente rica

Uma Esmirna antiga fora destruída pelos lídios no Sec. 6 AC.  Mas ela ‘ressuscitou’ no Sec. 4 AC. Aqui aparece alguma semelhança entre o Cristo, que “morreu ”, mas que “voltou a viver. ” Esmirna era uma cidade prospera, muito pró-Roma. Possuía seu templo a Deusa Roma, onde se fomentava o culto ao imperador.

Cristo aqui se nos apresenta como o “Primeiro e o Ultimo. ” (2:8) Este é o sentido da palavra Jeová, o sujeito soberano, o “Primeiro” porque transcende toda a história, e o “Ultimo” porque a culmina. Ele é a origem e o fim de tudo. Isto somente se pode afirmar sobre Deus. Mas no Apocalipse o atribuem também a Jesus Cristo, como sendo Deus. (1:17, 2:8, 22:13) O segundo título, aquele “que morreu e tornou a viver” antecipa a temática central desta carta: morte e vida. (2:7,8,10 e 11)

Cristo reconhecia a situação difícil da igreja de Esmirna: pobre, perseguida e caluniada. Mas para Cristo, estes cristãos pobres, de uma cidade prospera, eram de fato ricos diante de Deus). (. Falta uma menção de suas virtudes, e um inventario de seus méritos. Mas não é tão difícil extrapolar as virtudes das outras igrejas a Esmirna.

Na cidade havia uma numerosa e poderosa comunidade judaica que gozava de privilégios especiais ante o Império que os eximia da participação no culto ao imperador. Assim, denunciando a emergente igreja crista de Esmirna junto as autoridades, os judeus buscavam ganhar favores ante as autoridades romanas. (Veja o martírio de Policarpo).

Para Jesus estes judeus não são nada mais nada menos que a “sinagoga de Satanás. ” Diabo é aquele que faz falsas acusações, e o pai da mentira. Aqui João desenvolve uma teologia da igreja como a nova Israel de Deus, negando a autenticidade de uma sinagoga acomodada ao Império. Aqui, também, antecipa João o tema do dragão = diabo que se apossou do Império Romano (13:2-4) e da besta = Roma (Cap. 13). Satanás tem o seu trono em Pérgamo (primeira besta = poder político), e sua sinagoga em Esmirna e Filadélfia (segunda besta = poder religioso a serviço do Império.)

Quase ironicamente, o Senhor promete mais provas aos de Esmirna: “Não tenha medo do que você está prestes a sofrer. ” No Apocalipse as durações das provas sempre são breves e incompletas, enquanto a vitória dos fies é longuíssima, eterna.

A questão era enfrentar o sofrimento com fidelidade a Cristo até a morte, para receber a coroa da vida. O Apocalipse foi escrito contra o temor e a covardia. Os “covardes” são os primeiros da lista dos que não entrarão no Reino (21:8). Esmirna era muito leal ao Império. Os cristãos de Esmirna são chamados a uma tenaz fidelidade ao nome do Senhor, que está acima de todo o nome.

O prêmio da “coroa da vida” tinha um significado muito especial para os esmirniotas. As grinaldas que recebiam os vencedores dos jogos pan-iônicos de Esmirna eram muito cobiçadas. Em comparação, os cristãos fies até o fim, recebem como galardão a grinalda da vida eterna.

A promessa final aos cristãos de Esmirna é que “O vencedor de modo algum sofrera a segunda morte. ” (2:11b) A “segunda morte, ” significa no Apocalipse a condenação eterna no lago de fogo preparado para o dragão, as duas bestas, a morte e o Ades. (Apocalipse. 19:20; 20:6,10,14; 21:8). Para os cristãos que confrontavam a ameaça do martírio, esta promessa de escaparem de uma morte muito pior, se forem fieis até a morte (física), seria um alento muito poderoso para uma vida de fidelidade até as últimas consequências.

A grande igreja de Éfeso tinha uma falha fatal, e foi censurada. Mas Cristo não encontrou nada para censurar na pequena, pobre, pressionada e humanamente desprezível igreja de Esmirna.

A pequena igreja de Esmirna não era “melhor” porque possuía mais membros, maior orçamento, nem programas extraordinários. Era uma igreja pobre ao extremo, mas rica em valores espirituais e morais, em tenaz fidelidade; era aparentemente débil, mas tinha convicções fortes. Em sua debilidade era poderosa na forca do Ressuscitado. (2:8).

Estas cartas nos surpreendem a cada instante, porque as coisas não são como como parecem, nem como cremos que são. Notemos que as aparentemente grandes igrejas de Éfeso, Sardes e Laodiceia não impressionaram o Senhor. Mas as humanamente insignificantes igrejas de Esmirna e Filadélfia alegravam ao Senhor. Tamanho não é documento. O que realmente vale é a fidelidade tenaz, até as últimas consequências.

 

c) Cristo fala a igreja de Pérgamo:

                       Uma igreja fiel, mas infiltrada.

Pérgamo, menos importante que Éfeso e Esmirna comercialmente, era a cidade mais importante religiosamente. Nenhuma cidade da Ásia Menor podia competir com a majestade e beleza de seus numerosos templos, como, entre outros, o dedicado a Zeus, a Esculápio, mas também aquele dedicado ao culto ao imperador. O dedicado a Esculápio, cheio de cobras, se dedicava as curas medicinais, mas especialmente a hidroterapia.

Mas Pérgamo também se distinguia como promotora do culto ao imperador. Em 29 AC conseguiram aprovação de Roma para um templo ao divino Augusto e a Deusa Roma. Este culto imperial foi colocado acima de todos os outros, tronando Pérgamo a sede central de todo o culto ao imperador em toda a província. Mas para João Pérgamo é identificada como cidade “onde Satanás habita. ” (2:13)

Cristo se apresenta como armado de “uma espada afiada de dois gumes. ” (2:12) Ele está pronto para usa-la contra um grupo infiel dentro da igreja. Cristo demanda uma entrega total, sem nenhuma ambiguidade. Ele não tolera a acomodação ao culto do imperador, identificado como “trono de Satanás. ” (Roma, no ocidente, encarnava o “dragão ” (diabo) e Pérgamo, como Roma oriental, se tornava a morada de Satanás.)

Cristo felicita a igreja de Pérgamo por permanecer fiel em meio a um ambiente hostil. Aferrados ao nome de Cristo, um deles, Antigas, enfrentou o martírio. Mas, apesar da louvável fidelidade da igreja perseguida, havia dentro dela um grupo identificado como “apegados aos ensinos de Balaão”, aquele que desencaminhou Israel no passado, e como “nicolaitas. ” (2:15) (Veja também a Jezabel (2:20), a promotora da baalizacao do javismo.) Os nicolaitas recomendavam a acomodação ao culto imperial, permitindo a participação nas festas pagas, que muitas vezes terminavam em orgias sexuais. Daí o chamado: “Arrependam-se! ”

Tanto as heresias de uns, como a acomodação de outros, serão enfrentadas pela aguda espada do Senhor.

Para os vencedores há duas promessas: a “mana escondido”, que voltaria a cair nos dias do Messias, como parte de uma renovação divina em toda a agricultura. (2Baruc, 2Mac.) A “pedra branca” que tem sido identificada de inúmeras maneiras. O mais provável é que representava uma contrassenha para a admissão ao banquete messiânico. Estas pedras brancas, puras, formosas e duradouras, tendo o nome de Cristo gravado nelas, se constituíam num chamado para não negarem o nome de Cristo debaixo de provas atrozes.

Será que Satanás tem seu trono em nossa cidade e em nosso país? É muito fácil ver o demoníaco nos sistemas e partidos políticos antagônicos ao nosso, mas difícil de apercebe-lo debaixo de nossos próprios narizes. Será que Satanás mora onde sacralizamos sistemas político-econômicos e nos shoppings onde rendemos o culto consumista ao deus Mamon? Dizia Marti, é possível viver “nas entranhas da besta” sem percebe-lo; ou morar “onde mora Satanás ”, levando-nos muito bem com este vizinho distinto. Mas o chamado: “Arrependa-se! ”, não é somente para pecador fora da igreja.

 

d) Cristo fala a igreja de Tiatira:

                   Uma igreja enganada por falsos profetas

Tiatira era menor e menos famosa das sete cidades mencionadas. Era famosa por seus inúmeros grêmios de comerciantes e de artesãos. Praticamente todos os seus cidadãos pertenciam a um grêmio, algo como que necessário para sobreviver nesta cidade. As atividades gremiais eram permeadas por diversos aspectos do culto ao imperador.

A igreja de Tiatira enfrentava dois problemas sérios: Primeiro, a poderosa rede de grêmios fazia do culto ao imperador um problema sobrevivência econômica. Segundo, uma acomodação nicolaita, promovido por uma dinâmica mulher, reconhecida por alguns como profetiza.

A esta igreja Cristo se apesenta como aquele “cujos olhos são como chama de fogo e os pés como bronze reluzente. ” Aqui temos a única vez que “Filho de Deus” aparece no Apocalipse. Apolo, filho de Zeus, era a divindade titular de Tiatira. O imperador se considerava como Apolo, e por isto filho de Zeus. Mais uma vez João desmascara as pretensões divinas do imperador. O único e verdadeiro Filho de Deus se chama Jesus Cristo.

A expressão “olhos como chama de fogo” (2:18) parece relacionar-se com o poder de Cristo “que sonda mentes e corações, ” que nas Escrituras é sempre atribuído a Deus. (Mais uma vez, Jesus Cristo, não o imperador, é Deus.) A expressão, os pés, “como bronze reluzente, ” era fácil de captar em Tiatira, cidade que possuía a maior fundição deste metal, forte e resistente, muito usado para armamentos bélicos.

Cristo reconhece os méritos extraordinários da igreja em Tiatira. “Conheço as suas obras, o seu amor, a sua fé, o seu serviço, e a sua perseverança, e sei que você está fazendo mais agora do que no princípio ” (2:19).  Nem uma outra congregação recebeu um elogio tão rasgado. Duas, das três virtudes teologais, fé e amor, produziram abundantes frutos de serviço (amor em ação), e tenaz fidelidade (nascida da fé e nutrida da esperança). Em contraste com a igreja de Éfeso, cujo amor esmoreceu e cujas obras também estancaram, Tiatira aparenta ser uma igreja exemplar, sem rivais na Ásia Menor.

Mas estes elogios também foram anestesia para uma das repreensões mais fortes destas epistolas. Esta congregação com tantas virtudes, também sofria de um câncer espiritual. Uma profetiza carismática, que João chama de Jezabel, recordando a baalizacao do javismo em Rs 16-19,21. Possivelmente João mesmo havia confrontado esta profetiza, mas ela não se arrependeu. Por isto mesmo esta Jezabel recebe uma advertência seríssima: ela mesma cairá enferma s seus “amantes” (simpatizantes de seu nicolaitismo acomodador) e seus “filhos” (os que mais fanaticamente seguiam a Jezabel) cairão sob o juízo de Deus.

A frase “profundos segredos de Satanás” (2:24c), se refere ao ensino de Jezabel. Ela e seus seguidores se jactavam de conhecer segredos satânicos. Animavam os iluminados a irem até o fundo do mal para desafiar o diabo, e comprovar a plenitude da graça de Deus. Assim, poderiam participar plenamente da sociedade paga, mesmo sendo esta satânica, já que seu batismo os protegeria. Estes nicolaitas acomodados ao culto imperial e suas festividades pagas, “retribuirei a cada um de vocês de acordo com suas obras. ” (2:23c)

Os fiéis, descritos em 2:19 devem apegar-se “com firmeza ao que vocês tem.” (2:25) Estes recebem duas promessas: Primeiro, “Aquele que vencer e fizer a minha vontade até o fim darei autoridade sobre as nações. ” (2:26) Aqui Cristo promete compartir com os fiéis a autoridade sobre as nações. Seu poder é participativo, o que aparece inúmeras vezes no Apocalipse. (1:6, 5:10, 3:21, 20:2 e 6) O verso 27 descreve a total vitória de Cristo sobre as forças do mal.

A segunda promessa, a “estrela da manhã” parece referir-se a Cristo, que em meio de uma noite mais escura é o sinal do “amanhecer da clareza eterna… Onde a luz brilha, e é sempre manhã. ” (Bengel)

A igreja de Tiatira enfrentava uma dupla ameaça: a sobrevivência econômica e a falsa profecia. Não é difícil ver estas ameaças na cultura de consumo de hoje, muitas vezes associada a ao culto de Mamon. Não é o pecado da avareza o mais amplamente difundido em nossa cultura, associado com interessantíssimo marketing, mas também o menos reconhecido nas igrejas de hoje?

Nestes dias abundam profetas e profetizas.  De Jeová ou de Baal? Como discernimos a autenticidade profética nos dias de hoje? O verdadeiro profeta via de regra vai contra a corrente, mesmo contra o consenso da opinião pública, ela incomoda. A falsa profecia sempre acomoda, tranquiliza.

CAPÍTULO 1 – O Comentário do Apocalipse de Juan Stam

CAPÍTULO 1

Resumo e tradução de Manfred Grellert.

Nota de resumidor: Entre 2006 e 2014 Juan Stam publicou a obra de sua vida, um excelente comentário do Apocalipse em mais de 1500 páginas, em quatro volumes.  A obra sem dúvida é uma das mais significativas produções teológicas latino-americanas do início do Século XXI, se não a mais significativa. Meu intento e ajudar o pastor “ocupado com muitas coisas” a ter acesso ao fio norteador do comentário, animando assim pastores e estudiosos a lerem o comentário todo. Posso garantir que valera a pena. Uma boa notícia e que o próprio Juan Stam está produzindo uma versão abreviada de umas 500 páginas. Pessoalmente considero o Apocalipse importantíssimo para orientar o seguimento tenaz e resiliente de Jesus Cristo num continente que se diz cristão, mas é mais marcado pela violência e pela desigualdade sócio econômica do mundo. João tem uma visão de Deus e do Cordeiro, e partir desta, uma visão da igreja, da história e do seu fim. Juan orientou suas igrejas em meio as perseguições e tentações do fim do primeiro século. Cabe a nós orientarmos o povo de Deus em meio as vicissitudes e tentações do Século XXI. Quem sabe a pergunta que deve permear nossa leitura seria: como serei um tenaz e fiel seguidor de Jesus Cristo em um continente que se diz cristão cheio de contradições e tentações? Vamos usar a tradução da NVI que todo o Comentário Bíblico Latino-americano adotou, e do qual o comentário de Stam sobre Apocalipse faz parte. Os textos entre aspas são citações de Stam.

PRÓLOGO

“Antes de dirigir sua olhada para a difícil problemática de sua época, João enfoca bem a visão do Senhor, majestoso e soberano. ” Realmente são duas visões, uma do Filho do Homem (1:9-20), a outra de Deus e do Cordeiro (Caps. 4 e 5). Seria esta a necessidade primordial dos líderes cristãos brasileiros hoje? “Estas visões de nosso Deus são para João o firme fundamento da fé de da fidelidade. ” Antes de olhar para o contexto, é preciso primeiro “ter uma mui clara visão da pessoa e do poder de Deus. Esta é a primeira necessidade de toda comunidade crista debaixo de qualquer circunstância, sobretudo quando imersa em provas e perigos. ” Deus vem primeiro, mas o contexto deve ser levado a sério. Boa teologia busca relacionar a visão de Deus com a realidade do contexto. Stam o faz magistralmente.

  1. TÍTULO E PREFÁCIO (1:1-3)

Temos a chave central da mensagem no primeiro versículo: “Revelação de Jesus Cristo.” (1:1) O texto nos diz que a revelação procede de Deus, mediada por Jesus Cristo via anjo a João, que a escreve para as igrejas da Ásia. A mensagem vem por inspiração divina, por isto e “palavra de Deus” (tem autoridade divina) e também “testemunho de Jesus Cristo”, uma espécie de quinto Evangelho. Aqui aparece uma primeira tríade, que serão inúmeras no Capitulo 1, nos dando clara indicação do que se trata em Apocalipse. A esta tríade João acrescenta que Apocalipse é “profecia” que deve ser guardada, ou praticada, com a promessa de uma bem-aventurança. Apocalipse não é especulativo, mas profético e prático. “ Este caráter profundamente pessoal e pratico marca todo o livro do Apocalipse, como deve marcar também nossa interpretação hoje. Este livro não foi escrito para especulações futuristas, mas para uma leitura radicalmente pastoral e profética da realidade histórica. O Apocalipse é uma mensagem profética de João as igrejas da Ásia. Entende-lo e guarda-lo demanda proclamar à vontade e o Kairos de Deus para a igreja em nosso conturbado contexto atual. É ser profeta tupiniquim! A mesma bem-aventurança reaparece no fim do livro, em 22:7. Tem a ver com a fidelidade ao Senhor no momento histórico em que vivemos.

  1. UMA SAUDAÇÃO QUE SE TRANSFORMA EM DOXOLOGIA. (1:4-8)

Como nas cartas de Paulo, o Apocalipse começa com uma saudação típica: nome do autor, destinatários, e a saudação grega (graça) e hebraica (paz). O gênero literário do Apocalipse é uma longa carta para ser lida na assembleia congregacional, ou igreja.

  1. Uma benção triple.  (1:4-5a) A fonte da graça e paz é aparentemente trinitária. João conhecia estas sete igrejas da Ásia, hoje Turquia. O número 7 é simbólico, sinalizando que sua mensagem profética é para toda igreja do Senhor.

Devemos notar as inúmeras tríadas do texto, começando com uma emergente trindade. A soberania de Deus (Pai) aparece nos três tempos do verbo ser. Os sete espíritos (negrito) (Espirito Santo) aparece entre o Pai e o Filho, permitindo a expansão de sua Cristologia. Devemos captar o desenho simétrico deste hino (doxologia) para participarmos do louvor.

O Pai é descrito pelo grego mais irregular da carta “sinalizando a transcendência de Deus e o mistério de seu Ser.” Literalmente diz: “da parte do ‘Sendo’, do que ‘Era’ e do ‘Vindouro’. ” Relembra Ex. 3:14, central no monoteísmo de Israel, e que recorda que sempre encontramos a Deus na história.

Para os ” sete espíritos” (negrito), a “solução menos improvável é que se refere ao Espirito Santo… A junção dos “sete espíritos” (negrito) com os “sete candelabros” (negrito) = sete igrejas, parece sugerir ” a presença plena do Espirito Santo em cada uma das sete igrejas,” como “a plenitude total de sua presença em cada congregação.”

A parte cristologica, mais ampliada, “avança num crescendo doxologico are um poderoso e solene clímax de adoração.” O artigo cristológico aparece em três triadas: (1) A primeira triada aparece com três substantivos: a testemunha, o primogênito, e o soberano; (2) A segunda, com três clausulas verbais: ama, libertou e nos fez reino; (3) A terceira, oferece uma tríplice descrição da vinda de Cristo: ele vem, o verão e lamentarão. A quarta triada retorna ao Pai, culminando a doxologia descrevendo Deus como Alfa e Ômega, o Sendo, o Era e o Vindouro, e o Todo Poderoso.

Vamos somente pincelar o significado destas triadas brevemente: Na primeira Cristo se nos é apresentado como “testemunha fiel” (negrito), remontando a 1:2, e sugerindo “a fidelidade de Jesus durante sua vida terrena como testemunho fiel do Pai”, mas “aqui a ênfase parece cair sobre sua morte como testemunha fiel (negrito) diante de Pilatos.” Marturia (grego) no Apocalipse implica “em apostar a vida pela verdade.” Para os cristãos primitivos, pressionados para acomodarem-se ao culto do imperador o título “testemunha fiel (negrito) “inspirava valentia para não negarem seu Senhor.”

O segundo título, sobre a de Cristo, esta pressagia e garante a ressurreição dos cristãos. Um testemunho fiel, não morre, ressurge. Jesus transforma ” a funerária em sala de parto.”

O terceiro título (” o soberano dos reis da terra,) articula a ascensão de Cristo e sua exaltação a destra do Pai. O “soberano” era a tradução do latim de “princeps”, que era um título do imperador. Da colônia penal, o exilado João ” se atreve a dizer que que o soberano de todos os reis do mundo, não é Domiciano, mas o Cristo crucificado, ressurreto e exaltado.

Devemos notar que João declara a soberania de Cristo sobre os líderes políticos da terra. Isto ocorre nove vezes no Apocalipse. Nesta primeira menção “os reis da terra” são súbditos de Cristo. Nas sete vezes seguintes “os reis da terra” se deixam seduzir pela besta (6:15, 16:14, 17:2,18, 18:3,9 e 19:19). Mas na última menção (21:24), eles estão novamente sujeitos ao Senhor, levando a gloria e a honra de seus povos a Nova Jerusalém. ” O aparente controle diabólico do mundo político se descobre como passageiro e enganoso. Até o final, e em todo o momento e transe, Jesus Cristo e o Senhor.”

  1. Uma tripla doxologia (1:5b-8). Agora Cristo é merecedor de toda a honra, porque nos ama, nos livrou de nossos pecados e nos constituiu numa linhagem de sacerdotes reais. O soberano dos reis da terra agora se nos é apresentado como aquele que “nos ama.” (Particípio presente= ação continua.) Que consolação para os cristãos atucanados pelo império!

Em segundo lugar, Cristo “nos libertou (particípio aoristo=ação completa) de nossos pecados pelo seu sangue.” Também aqui, como no testemunho fiel até a morte, João aparenta relacionar a obra redentora de Cristo, fiel até a morte, com o chamado a fidelidade até a morte dos crentes na Ásia. Cristo nos liberta da culpa e do poder do pecado para uma vida de fidelidade em meio as pressões e tentações do império, ontem e hoje.

Finalmente, Cristo nos fez um “reino de sacerdotes.” Isto é uma referência clara a Ex. 19:16, transferida no NT para a igreja, como novo Israel, e como comunidade alternativa dentro do Império Romano. O chamado tem uma dimensão religiosa, sacerdotes, e uma política, real.

Estes dois títulos fazem uma correlação teológica entre a realidade política e a realidade religiosa. A teologia bíblica não tolera nenhum divórcio entre o sagrado e o secular, entre espiritualidade e história. No futuro participaremos da equipe de governo do Cordeiro, contraposta a equipe nefasta do dragão=diabo.

Nossa participação no “testemunho” de Cristo nos torna uma contracultura em meio as idolatrias do Império, porque o Cordeiro é nosso único Senhor e Rei. Por isto agora devemos ser fieis as exigências do “reino de Deus e sua justiça.”

I. PRIMEIRA PARTE: VISÕES DO SENHOR (1:9-3:22)

Depois de um belo, profundo e poético prologo, teologicamente denso, João comparte uma experiência estremecedora ocorrida num domingo na colônia penal de Patmos, que o levou a escrever a sua carta ou livro.

  1. Cristo vive e está presente (1:9-20)

 a. Um pastor preso vê a Cristo (9-11)

João se apresenta somente como “irmão e companheiro de vocês. ” (9) João não usa nenhum título ministerial. Sua autoridade vem de sua relação profunda com o Senhor e de sua solidariedade com suas igrejas.

Esta solidariedade é triple: 1) Compartem o seu “sofrimento” pois João se encontra exilado numa colônia penal para presos políticos. 2) Compartem no “Reino, ” porque participam “já” agora na obra transformadora de Deus, e de cuja gloria participarão no fim da história. Isto confere dignidade e importância histórica as pequenas igrejas da Ásia, fustigadas pelo Império. Mas também alimentava a sua fé, para que se mantivessem firmes no seguimento tenaz de Jesus Cristo.

Também 3) participam da “perseverança em Jesus, ” que mais uma vez enfatiza a resiliência tenaz para permanecerem fieis a Jesus (ou como Jesus) em meio as perseguições imperiais. Um tema central, recorrente, do Apocalipse.

João agora se situa geograficamente. Diz que se encontrava em Patmos, a uns 50km a sudoeste de Éfeso, para onde se deportavam inimigos políticos. Ali se encontrava por duas razoes: “a palavra de Deus, ” seu testemunho profético da vontade de Deus, e o “testemunho de Jesus, ” seu compromisso de fidelidade a Jesus.

Preso e deportado, João está “no Espirito, ” isto é, espiritualmente acessível para receber a revelação divina. Por importante que seja a política, ela não pode inibir a sensibilidade espiritual. O Espirito sopra onde quer, e não somente onde o permitem. Isto ocorre num domingo quando recorda saudoso o povo de suas igrejas, mas também o poder do Deus da ressurreição dominical.

João agora ouve “uma voz forte, como de trombeta. ” Quando menos esperamos, o Senhor pode vir para falar-nos. Por isto temos que nos precaver para que a política não atrofie nossa sensibilidade espiritual. A acessibilidade espiritual é fundamental para que se ouça e se veja o Senhor. A efervescência política não deve entorpecer a sensibilidade receptiva do homem de Deus. Preso, mas acessível a Deus, João recebe a incumbência para escrever o que viu e ouviu num livro, a ser enviado as suas sete igrejas.

b. Patmos se transforma em templo e monte de transfiguração (1:12-16).

Primeiro, aparecem os sete candelabros=igrejas, e no meio delas alguém “semelhante ao filho de homem. ” (12) Cristo aparece no meio de suas igrejas. João vê as igrejas como lugar da presença divina dentro da geografia da Ásia Menor, vendo sua geografia como se fosse um mapa espiritual da província. O culto ao Imperador também envolvia luzes e candelabros. O número sete indica que estas igrejas representam toda a igreja universal, tendo Cristo como seu princípio vital de unidade.

O centro do cenário é “alguém como filho de homem, ” rodeado de luz e de gloria, recordando aspectos descritivos da aparição de Deus no AT. Não se podia dar a João um epifania mais comovedora e fortalecedora do que está epifania do crucificado, agora ressurreto. Ainda que o título aparenta sinalizar a humanidade de Jesus, aqui a ênfase cai no seu caráter transcendental, sobrenatural e divino. Mais que uma glorificação do Jesus histórico, aqui temos uma manifestação da eterna gloria divina, personificada em Jesus.

O significado do quadro está mais em seu conjunto do que em seus de talhes específicos. Juntos a “veste” e o “cinturão” parecem sugerir a dignidade sacerdotal e real de Jesus. (Mais uma vez andam juntos o religioso e o político.)

O “cabelo” de lã branca e os “olhos” como chama de fogo (do Ancião de Dias) afirmam a gloria eterna de Jesus. Os “pês de bronze, ” em contraste com os de Nabucodonosor e os reinos deste mundo, indicam um fundamento firme e forte, que forca alguma pode tombar.

A “voz” forte, como “som de muitas aguas, ” um verdadeiro Iguaçu, é outro atributo de Deus que aqui se transfere a Jesus.

Na “mão” direita tem as “sete estrelas, ” que mais uma vez tem um paralelo com o culto ao imperador, cuja coroa tinha sete estrelas encravadas, possivelmente representando os sete planetas então conhecidos. João nos diz que o poder cósmico não está na coroa do imperador, mas na mão direita de nosso Senhor. O futuro do mundo não depende dos poderes astrais, mas da fidelidade da igreja a sua missão.

A severidade do Senhor aparece na figura da “espada de dois gumes” saindo de sua “boca. ” Esta espada não somente esquadrinha e julga os desobedientes, mas, como veremos na carta da igreja de Laodiceia, também a sua igreja. Surpreende notar que Cristo as vezes luta contra sua própria igreja, e com uma espada afiadíssima.

Por fim, João volta a cabeça, para completar seu retrato do Cristo glorificado, destacando que “sua face era como o sol quando brilha em todo o seu esplendor. ” Sem dúvida aqui temos uma reconhecida descrição da gloria divina. Este mesmo rosto será a luz da nova criação. Assim, a ilha penal de Patmos se converte em monte de transfiguração, onde João encontra como nunca antes o poder e a gloria de seu Senhor. Este é o Cristo que anda em meio aos sete candelabros=igrejas.

Vale a pena notar que a “voz” ocupa a parte central dos traços de Jesus que viu, sinalizando a centralidade da palavra profética.

c. Jesus comissiona seu profeta (1:17-19)

A reação de João a esta visão do Cristo glorificado era de esperar-se, pois “caiu aos seus pês como morto. ” Esta é a reação típica de homens que se encontraram com Deus nas Escrituras. Ao encontrar-se “como morto” João se identifica com a situação de muitos de seus futuros leitores na Ásia Menor: pelo chão como mortos, mas aos pés do Senhor.

Jesus responde a prostração de João com um gesto e com uma palavra animadora respaldada em três razoes. O toque do Senhor põe de pé os caídos. A palavra “Não tenha medo, ” aparece repetidas vezes nas Escrituras como palavra de Deus aos vocacionados. Seguir a Jesus Cristo não é para covardes. Ser profeta é prostrar-se aos pés do Senhor, receber o toque de sua mão e ouvir sua palavra de alento, para viver destemidamente.

O Cristo glorificado respalda esse exorcismo do temor (covardia?) através de uma teologia da morte e ressurreição que pode ser um resumo de Fil. 2:6-11.

Eu “sou” ecoa o javismo hebreu. Afirmando ser o “primeiro e o ultimo”, uma designação conhecida de Deus, o Senhor afirma sua presença não somente no início e no fim da história, mas também durante todo o processo histórico.

Quando afirma ser o Vivente, “aquele que vive” aponta para a eterna deidade de Jesus, aquele que tem vida em si mesmo, foi o criador da vida e é o Senhor da vida.

Mas como “vivente” Jesus afirma que “estive morto. ” Fui cadáver. Realmente morreu por nós, mas sua morte nos traz vida (1:5). Aqui aparece a profunda identificação entre Cristo e o cristão. João se sentia morto, mas Cristo o tocou. João caiu como cadáver, e Cristo também foi cadáver. Mas agora ele é duplamente o Vivente, como o criador da vida e como vencedor da morte. Em sua ressurreição ele venceu para sempre a morte, e nos fez participes de sua vida indestrutível.

Por que? Porque Jesus tem as “chaves da morte e do Ades. ” Desde sua cruz Cristo assaltou as portas do Ades, destruiu suas prisões, venceu a morte, e levou as chaves do reino inimigo. Ele venceu e agora tem total autoridade sobre a morte (II Tim. 1:10, Heb.2:15).

No fim da história a morte e o Ades são lançados no “lago de fogo. ” (20:14) Duas conclusões seguem: Primeiro, os cristãos nunca podem aliar-se as forças anti-vida de seu próprio contexto. E segundo, os cristãos nunca devem temer aqueles cujo único poder é matar, pois desde a cruz de Cristo a morte é uma forca derrotada.

Mas a finalidade de toda esta visão é afirmar a vocação de João: “Escreva, pois, as coisas que você viu” e ouviu, tanto as que concernem ao presente como as futuras.

d. Uma nota de esclarecimento que nos confunde mais: os anjos das sete igrejas (1;20)

Ao que tudo indica os “candelabros” se referem as realidades terrenas e empíricas das igrejas, enquanto “estrela” e “anjo” parecem referir-se a uma dimensão transcendental da igreja, sua realidade escatológica e transcendental em Cristo, seu Senhor.

Mas para ser profeta é preciso primeiro ter uma visão do Cristo majestoso Senhor. E, a partir desta visão, olhar para a igreja lucidamente, olhar para a história e contexto nacional criticamente, e olhar para o fim da história confiantemente. Tudo começa com a acessibilidade e sensibilidade espiritual, com estar aos pés do Senhor, com ser tocado por sua mão, e com ter os olhos abertos para ver o Senhor majestoso, mas também para ver a realidade circundante, e declarar a vontade de Deus para ela. Para isto não se pode ser covarde.

INTRODUÇÃO – Comentário do Apocalipse de Juan Stam

O Comentário do Apocalipse de Juan Stam

Abreviado e traduzido por Manfred Grellert

Uma palavra do abreviador e tradutor

Considero o Comentário do Apocalipse de Juan Stam a obra teológica evangélica mais significativa produzida na América Latina no início do Século XXI. Suas 1500 páginas de texto, as vezes denso, foram publicados em quatro volumes entre 2006 e 2014, pela Editora Kairos, Buenos Aires.

Meu intento é tornar acessível a pastores brasileiros o pensamento central do Comentário num futuro Blog, com a intenção de que façam o esforço de ler, viver na pratica pastoral e pregar o Apocalipse. Nossa pátria carece de pastores da estirpe de João de Patmos. Asseguro aos valentes que valera a pena o esforço para a compreensão do Apocalipse

O projeto constaria de uma Introdução, seguida dos vinte e dois capítulos, conforme o texto do Apocalipse. Usarei, como Stam, o texto da NVI. Recordo meus anos iniciais de estudos teológicos, no início da década dos sessenta, em que fiz a primeira leitura de comentários bíblicos, e os dois primeiros foram sobre o Apocalipse, um de Summers outro de McDowell publicados pela CPB. A ideia e ser fiel ao pensamento de Stam, quase sempre literalmente.

Vou olhar o texto preferencialmente animado por duas perguntas básicas: o que significa seguir a Jesus Cristo tenaz e resilientemente no conturbado contexto brasileiro? O que o profeta de Patmos nos ensina sobre um pastorado profético e ético?

Stam esboça o Apocalipse da seguinte maneira: I. Prólogo (1:1-8), II. Primeira Parte: Visões do Senhor (1:9-5:14), III. Segunda Parte: Visões da Historia (6:1-16:21), IV. Terceira Parte: Visões da Vitoria (17:1-22:5) e V. Epílogo (22:6-21).

Finalmente, Stam não somente trabalha o texto cuidadosamente, a que aliás dedicou toda a sua vida, mas oferece significativas reflexões sobre as contextualizações do texto para o nosso continente. Para mim estas contextualizações se tornaram a saborosa sobremesa depois de um bom prato forte. Aos menos animados com a leitura extensa, recomendo começar com as contextualizações, que aparecem com letras distintas.

Todas as citações serão dos quatro volumes do comentário (I, II, III e IV), a que seguirá a página. Ou da própria abreviação feita por Stam.

No último parágrafo de seu prefácio Stam nos revela sua intenção de escrever seu comentário: “Que este comentário não seja para os leitores somente uma experiência teórica, senão que, de repente, se volva uma nova vivencia do livro e um novo encontro com aquele “que está sentado no trono e ao Cordeiro”. Espero que a experiência de estudar este comentário signifique voltar a encontrar-nos com João de Patmos aos pés do Filho do Homem para escutarmos juntos “o que o Espirito diz as igrejas”. Em nosso caso, a igreja brasileira hoje.

INTRODUÇÃO: Como ler o Apocalipse

Stam não debate perguntas técnicas. De saída afirma que o Apocalipse é para “valentes”, por ser complicado, e para “humildes,” que querem escutar o texto atentamente, mesmo sem conseguir decifrar todos os seus detalhes. Pressupõem as “mais confiáveis conclusões exegéticas e históricas da ciência bíblica.”(I,19)

  1. O Apocalipse foi escrito para ser entendido.

A intenção do Apocalipse não é a especulação fantasiosa ou mercantilista que infunde medo. Seu foco são as igrejas que se sentiam ameaçadas gravemente, e que escutaram uma palavra “clara e compreensível” de “seu Senhor animando-os para os desafios do discipulado fiel no seu contexto histórico” (20). O Apocalipse não é um quebra-cabeça esotérico, especulativo, futurista, como soe ser interpretado, a partir de premissas equivocadas. “O Apocalipse foi escrito para ser entendido precisamente pelos fieis comuns e correntes da Ásia Menor.” (21) A questão não é a especulação fantasiosa, mas a obediência fiel até o martírio.

  1. João de Patmos fala do futuro, mas a partir do seu presente e para seu presente.

“… a principal concentração do livro se enfoca sobre a situação imediata em que as congregações se achavam imersas. Em nenhum momento deixa atrás a realidade sócio histórica de sua época.” (21) Por isto, “todo o Apocalipse é uma mensagem direta para seus primeiros leitores,” e “João descreve mesmo os acontecimentos futuros em termos imediatos da vida de seus contemporâneos.” (22) O Apocalipse é uma mensagem inspirada para o Século XXI, somente porque foi uma mensagem clara e poderosa para os crentes do fim do Século I. (22) E Stam arremata: “… interpretar o Apocalipse como se tudo se tivesse cumprido no Século I seria perder toda sua projeção futura e efetivamente negar as Escrituras. Mas interpretar o Apocalipse como se somente se relacionasse com nosso século e não tivesse nenhuma mensagem para seus primeiros leitores do fim do Século I, é a pior forma de estudá-lo e também contradiz a Palavra de Deus.” (23) Para ler o Apocalipse adequadamente, há que discernir o “já” e o “ainda não” escatológico.

  1. A literatura apocalíptica: a imaginação utópica a serviço do Reino de Deus.

“O Apocalipse foi escrito numa linguagem simbólica bem conhecida de seus primeiros leitores: a linguagem apocalíptica.”(23) Por isto deve ser lido com a imaginação criativa aguçada. Esta literatura tem pelo menos duas características: Em primeiro lugar, um dualismo ético, que vê a história como luta entre o bem (Deus) e o mal (Satanás); e em segundo lugar, um conceito escatológico da história, que contrapõem “este século” e o “século vindouro.” (24)

Em um nível mais profundo devemos notar que a literatura apocalíptica se destaca por duas características mais: “é contextual (sempre intenta interpretar para os fiéis a situação em que vive o povo), e pastoral (intenta orientar e animar o povo a fidelidade a Deus) ” (24). Descuidar estas características leva a interpretações estapafúrdias.

Outras duas características da literatura apocalíptica são seu estilo estético, pintando quadros, e sua teologia da história, alcançando “uma visão da história como totalidade, como também do sentido, unidade e meta do processo histórico.”(25) Vendo em suas lutas históricas o drama do conflito entre Deus e Satanás, podiam conduzir tanto a uma “passividade resignada” como a uma “ética sócio-política.” O Apocalipse segue esta segunda opção. Por isto mesmo deve ser lido como literatura “apocalíptica profética” (26), porque insta a fidelidade histórica a luz do futuro escatológico. João de Patmos é o apocalíptico profético por excelência. Apocalipse de João é um chamado a tenacidade e fidelidade até as últimas consequências, na segurança de que Jesus Cristo e o Senhor. (26)

  1. Sugestões praticas para interpretar bem o Apocalipse:

 

  1. Interpretar o Apocalipse exegeticamente.

Primeiro temos que descobrir o melhor que possamos o que entendiam o autor inspirado e seus primeiros leitores, as sete igrejas da Ásia. Por isto a consigna: “o texto, todo o texto, somente o texto.” (26). Se busca entender o texto “em seus próprios termos e contexto.” (26)

  1. Interpretar o Apocalipse historicamente.

O refrão conhecido “um texto fora do contexto é um pretexto” se aplica não somente ao contexto literário de uma passagem, mas ao contexto histórico do livro e da passagem.

AUTOR. É João de Patmos, que era conhecido pelas igrejas da Ásia como pastor e profeta. No Ocidente foi identificado como o “discípulo amado.” Nós o chamaremos de João de Patmos.

DATA e CONTEXTO. Vamos supor que o Apocalipse foi escrito no final do reinado de Domiciano, no ano 95. ” O livro não tem nada que não esteja de acordo com 95 AD.” (28)

“… central para o Apocalipse é o problema do culto ao imperador, que vinha crescendo desde os tempos de Augusto.” (29)

“Para o Império Romano cada vez mais heterogêneo, com sua enorme diversidade de culturas e religiões, o culto ao imperador prometia ser sua principal forca coesiva. ” O culto ao imperador era um laço de união cívica. Por isto, para o Império Romano o problema dos cristãos (não alinhados ao culto do imperador) era essencialmente político (31). Ao recusarem participar nas procissões que celebravam o culto ao imperador, os cristãos ficavam expostos, porque para eles só Jesus Cristo era Senhor. O culto ao Cristo Senhor implicava uma ruptura política. João de Patmos viu com alarmismo profético o que atemorizava os cristãos primitivos, dirigindo-lhes uma mensagem pastoral, contextual e profética.

Além do culto ao imperador, João de Patmos também percebeu a crise moral e social em que vivia o Império. “Ao esquadrinhar o livro do Apocalipse com lupa histórica, descobrimos que o autor inspirado estava mui consciente desta crise multifacetada, dirigindo sua mensagem profética a todos os seus aspectos: exploração e escravidão, especulação e aflição, consumismo e fome, militarismo e repressão, o culto ao poder e ao sucesso, a falta de respeito pela verdade e a deterioração do valor da palavra. O vidente de Patmos conhecia bem as entranhas da besta.” (32-33)

E neste contexto sócio-econômico-político que “João de Patmos nos chama para a entrega de nossa vida a este risco atrevido que se chama fé” (33). Que para ele sempre foi a fé perseverante, resiliente e tenaz, que topava o martírio. Nada de especulações dispensacionalistas.

  1. Interpretar o Apocalipse Cristocentricamente.

Apocalipse é revelação de Jesus Cristo. “Jesus Cristo é o personagem central de todo o livro; e o tema central de todo o livro é: Cristo é o Senhor” (33). As leituras bestia-centricas são besteira. Jesus vence a besta e o dragão. ” Ele e o centro da história e o Senhor do futuro” (34).

  1. Interpretar o Apocalipse imaginativamente e com todos os sentidos.

O Apocalipse e um drama no qual há que entrar e participar. “O temos entendido somente quando experimentamos dentro de nós mesmos toda a incrível forca dramática de sua narrativa.”(34)

O Apocalipse apela constantemente a todos nossos sentidos, não somente ao intelecto: visão, audição, olfato, tato e sabor. Entendemos o Apocalipse quando o “experimentamos” de forma empática e pessoal. Meras abstrações intelectuais são de pouco valor.

“Mais que literal e denotativa… a linguagem do Apocalipse é majoritariamente conotativa, sugestiva e evocativa. É linguagem poética ante as ameaças que João percebia em seu contexto histórico. Ele utiliza está linguagem para criar um universo simbólico alternativo a realidade circundante (37). Por isto mesmo o Apocalipse demanda uma leitura não somente exegética, mas também estética.

  1. Interpretar o Apocalipse pastoralmente.

“João de Patmos era um pastor de coração: escrevia para orientar as congregações, e fortalece-las em tempos de prova e perigo.”(38) Esta orientação pastoral o distingue de outros autores apocalípticos. João conhecia suas igrejas e as cidades em que se encontravam. Por isto, primeiro, “o livro em sua totalidade estava plenamente ao alcance de seus primeiros leitores;” e, segundo, “sua mensagem era uma tremenda mensagem de esperança e um desafio a valentia crista” (39). Nunca podemos esquecer que “a conjuntura do tempo, sob o imperialismo de Roma, era de fustigamento, ameaças e muitos mortos.” (38)

O Apocalipse é uma pastoral de acompanhamento da igreja em tempos de crise. Nada de “terrorismo apocalíptico” ou “espantologia evangélica.” O Apocalipse é um chamado ao seguimento tenaz de Jesus Cristo em situações de crise.

  1. Interpretar o Apocalipse praticamente.

Isto é, “desde uma perspectiva radical e integralmente ética” (40). João de Patmos “não se limita a esfera moral pessoal e privada. Ele tem muito a dizer sobre “justiça social e econômica e sobre a postura que devem assumir os seguidores do Cordeiro ante o mundo.” (40) Acima de tudo o Apocalipse coloca “para os cristãos uma ética evangélica integral, com ênfase especial a fidelidade histórica nas crises da sociedade.”(40)

  1. Interpretar o Apocalipse sinoticamente.

“Este livro e uma obra de arte, com uma estrutura arquitetônica digna de uma grande catedral, ou da unidade coerente de uma grande obra de teatro” (40). Ou, o Apocalipse é “Arquitetura em movimento.” (Ellul)

5. Estrutura e Simetrias de uma Obra Magistral de Arquitetura

“… o pensamento de João é muito dinâmico e fluido. De maneira genial, maneja simultaneamente vários esquemas sobrepostos harmoniosamente, de maneira que o conjunto total da obra avança com uma impressionante integridade estética e forca reveladora.” (41)

Notemos primeiro que a estrutura do livro contém uma série de setenários: sete cartas, sete selos, sete trombetas e sete taças. Os setenários oferecem a estrutura fundamental do livro.

Dentro dos setenários João segue um desenvolvimento muito simétrico. Os quatro primeiros elementos sempre vão juntos.

Dentro dos setenários João inserta uma serie de prelúdios, interlúdios e parênteses. “Os interlúdios vão tipicamente entre o sexto e o ultimo elementos, criando assim uma tensão de dramaticidade com irresistível. (41)

O parêntese mais significativo tem a ver com as forças do mal no processo histórico. Assim, desde os capítulos 12 e 13 se articula o “drama do dragão”, que segue no capitulo 17 (juízo da prostituta) e termina no capitulo 20, com a destruição do dragão. Aqui aprendemos algo sobre o demoníaco na história, mas também sobre a sua destruição. O livro termina com a vitória final do Cristo, do Reino de Deus.

O esboço que Stam segue já compartilhamos acima. Aqui vale a pena somente enfatizar: “O livro do Apocalipse é uma joia literária e espiritual. Sua estrutura é uma catedral gótica de multiplicidade em unidade. É um canto cósmico, uma dança de alegria evangélica. Uma festa de imagens e celebrações. Um museu de pinturas surrealistas e uma sala sinfônica de concertos extraordinária. É um manual para mártires, e um mapa dos caminhos históricos do discipulado fiel. E sobre tudo, em todas as suas páginas é um retrato do rosto de nosso amado Senhor e Salvador.”(42)

O Apocalipse foi uma grande carta a ser lida em congregações locais, cuja intenção era encorajar e desafiar ao seguimento tenaz de Jesus Cristo em meio as tentações e provações do império.